- Texto escrito por Cristina Moreno de Castro
Eu tinha curiosidade de ler “Feliz Ano Novo“, de Rubem Fonseca, desde que havia lido sobre a forma como ele foi censurado pela ditadura militar, no capítulo 26 do livro “Sucursal das Incertezas“, do meu pai.
O capítulo começa contando sobre a revista literária “Inéditos”, lançada em 1976 em Belo Horizonte. O sucesso de seu lançamento foi bruscamente interrompido depois que o diretor da Divisão de Censura de Diversões Públicas da Polícia Federal, Rogério Nunes, determinou a verificação prévia de todo o material da publicação.
Os dirigentes da revista se viram obrigados a fechá-la, sem condições de atender à “burocracia repressora” da PF. Não sem antes denunciar o momento de grave censura às artes e à imprensa em que vivia o Brasil:
“Vimos denunciar também que a instauração da censura prévia à revista Inéditos não pode e nem deve ser vista como um fato isolado, pois soma-se à censura imposta desde longa data a publicações como Movimento, Opinião, O São Paulo, Paralelo, Tribuna da Imprensa e outros, assim como a proibição de livros como Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, e Feliz Ano Novo, de José Rubem da Fonseca. A censura prévia a Inéditos nada mais revela que um acirramento do processo repressor à livre expressão do pensamento e ao debate das ideias em nossos países.”
“Feliz Ano Novo” tinha sido lançado em 1975, circulou pelo país por um ano, até que, em dezembro de 1976, “o ministro [da Justiça] Armando Falcão proibiu a publicação e a circulação do livro em todo o território nacional, determinando a apreensão dos exemplares expostos à venda“.
Meu pai segue contando como o “Jornal do Brasil” reagiu à censura, notadamente da obra de Rubem Fonseca, com publicação de várias opiniões sobre o ato de Falcão – “um próspero dono de cartório no Rio de Janeiro recebido de presente do presidente Juscelino Kubitschek”.
A reação continuou e ficou mais forte em 25 de janeiro de 1977, quando foi entregue ao Ministério da Justiça um manifesto contra a censura, com 1.046 assinaturas de escritores, jornalistas, professores, cientistas, músicos e artistas brasileiros, redigido em Belo Horizonte, que foi publicado na íntegra pelo JB.
Nunca antes havia tido um movimento tão amplo em defesa da liberdade de opinião no país. Entre os que assinaram estavam gente como Alberto Dines, Aldir Blanc, Antônio Callado, Tom Jobim, Carlos Heitor Cony, Chico Buarque de Hollanda, Dias Gomes, João Ubaldo Ribeiro, Jorge Amado, Oscar Niemeyer, Rubem Braga, Fernando Brant, Fernando Morais, Milton Nascimento, Murilo Rubião, Roberto Drummond, Zuenir Ventura e, praticamente, toda a sucursal do JB e da Rádio Jornal do Brasil em Belo Horizonte, incluindo meu pai.
Acabou não surtindo efeito prático, ao menos não imediato. No caso de “Feliz Ano Novo”, o livro só foi liberado da censura 13 anos depois, em 1989, quando o Tribunal Regional Federal decidiu, por dois votos a um, que Armando Falcão estava errado. Nisso a ditadura militar já tinha acabado, o Brasil já vivia uma democracia, mas Rubem Fonseca ainda estava na “insana luta entre a arte e a censura”, como conta Sérgio Augusto no apêndice da edição da Nova Fronteira que eu li.
Até então, eu só tinha lido três livros de Fonseca: “Agosto“, em 2001, “Vastas emoções e pensamentos imperfeitos“, em 2004, e “A Grande Arte“, em 2015. Todos muito bons, todos com aquela linguagem ferina típica do autor, cheia de palavrões.
“Feliz Ano Novo” é um livro curto, de cerca de 150 páginas, com 15 contos, cheios de diálogos não sinalizados por aspas ou travessões, mas ainda assim muito fluidos e eloquentes. De novo, também cheio das “palavras de baixo calão”, que devem ter ofendido a “moral e os bons costumes” do ministro da ditadura.
As histórias, em sua maioria, trazem um ótimo retrato de uma sociedade desigual e problemática como era a brasileira nos anos 1970 (e continua sendo, em vários aspectos). Algumas são chocantes, sim. Como choca – ou deveria chocar – a realidade de tanta gente. Outras estão mais para comoventes.
Como disse Afrânio Coutinho, imortal da ABL que fez a perícia da obra para a Justiça, o livro não ataca ou defende a moral e os bons costumes. Apenas retrata os costumes da sociedade, sejam eles bons ou maus.
Isso é o que a arte faz, principalmente a literatura. E não cabe a nenhum ditadorzinho definir o que pode ou não ser lido, visto ou ouvido pelas pessoas. Simples assim.
“Feliz ano novo”
Rubem Fonseca
ed. Nova Fronteira
182 páginas
R$ 44,26 na Amazon (preço consultado na data do post; sujeito a alterações)
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Boas lembranças, Cris. E assim caminha a humanidade…
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Fiz este post há tempos, mas casou direitinho com os fatos dos últimos dias, né? Afinal, uma das coisas péssimas de uma ditadura é a censura. E que bom que quem tentou armar pra volta da ditadura no Brasil acabou de ser condenado.
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