Vale ver no cinema: Ainda Estou Aqui
2024 | 2h16 de duração | Classificação: 14 anos | nota 10
Apenas dois dias depois que o roteiro de Walter Salles me fez chorar enquanto assistia ao belíssimo filme “A Contadora de Filmes“, me vi soluçando em lágrimas de tristeza – mas principalmente de indignação – enquanto via este “Ainda Estou Aqui“, dirigido pelo carioca.
Quem acompanha minhas resenhas neste blog sabe como é raro eu dar nota 10 a um filme. Ele precisa ser excelente em termos de narrativa, atuação, fotografia, e todos os quesitos técnicos (o que garante a nota 9). Mas precisa ir além, e gerar algum arrebatamento pessoal em mim, que é totalmente subjetivo, e me leva ao 10.
Foi o que aconteceu com este “Ainda Estou Aqui”. A história do desaparecimento – arbitrário, desumano, cruel, sórdido – do ex-deputado Rubens Paiva, pelas mãos da ditadura militar brasileira, e a batalha subsequente de sua mulher, Eunice Paiva são brilhantemente narrados neste filme de Salles baseado no premiado livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do casal (que, na época em que o pai foi assassinado, tinha apenas 11 anos).
É impossível assistir a este filme e não ficar revoltado com as torturas, mortes e destruições de famílias que a ditadura militar capitaneou no Brasil (fora a censura, a corrupção, o medo, o ódio, os exílios etc).

O caso de Rubens Paiva é ainda mais exemplar por ter sido um sujeito que nunca participou de luta armada – estava bem longe de ser o “terrorista” que os coronéis usavam de justificativa para cometer suas atrocidades – e cujo único “crime” foi ter entregado cartas de exilados dando notícias a familiares preocupados que tinham ficado para trás.
Mas o foco do filme não é ele: é a fortaleza na figura enganosamente frágil de Eunice, maravilhosamente interpretada por Fernanda Torres (nas cenas de 1971 e 1996) e por sua mãe Fernanda Montenegro (na cena de 2014), que penso ser a melhor atriz da história do Brasil.
Eunice conseguiu não só criar seus cinco filhos, apesar de ter sido presa durante 12 dias e depois ter de viver sob ameaça e vigilância constante dos ditadores e de ter perdido até o acesso ao dinheiro da família, mas tornou-se uma verdadeira ativista pelos direitos humanos e contra a ditadura militar. Ela resolveu começar a estudar direito dois anos depois do assassinato de Rubens, formou-se advogada aos 47 anos e passou a atuar em defesa dos povos indígenas, tornando-se uma referência no assunto.

E ainda conseguia manter o sorriso na cara, e fazer seus filhos sorrirem também, como na famosa foto da revista Manchete (acima).
“A principal lição que Eunice Paiva deixa é recusar o papel de vítima, é não baixar a cabeça. Ela ficou com cinco crianças e sem dinheiro nenhum, mas não parou, tocou em frente, se reconstruiu, priorizou sua integridade enquanto mãe. Ela sempre dizia que nós não éramos uma família vítima. A vítima era o país”, disse o filho Marcelo ao jornal “O Globo”. À “Folha de S.Paulo”, no obituário de 2018, ele já tinha dito: “Ela nunca faria uma cara triste. Bem que tentaram”.
Que mulher impressionante! Em dado momento, quando finalmente consegue o atestado de óbito de Rubens, já nos anos 90, uma repórter pergunta a ela se era o caso de se preocupar com o passado, diante de tanta coisa mais importante que estava acontecendo no momento. E ela respondeu que sim, que era importante revirar o passado, pois nada impede que o que ocorreu volte a ocorrer.
Foram 21 anos de ditadura militar no Brasil. Ao todo, 20 mil pessoas foram torturadas e mais de 400 foram reconhecidamente mortas, das quais mais de 200 seguem desaparecidas até hoje, com corpos nunca encontrados (como foi o caso de Rubens). Fora os camponeses, indígenas e várias outras vítimas, que fazem os mortos pela ditadura passarem de 10 mil.
Entre as graves violações cometidas pelo Estado no período, e apontadas no relatório da primeira Comissão Nacional da Verdade, estão as seguintes:
- Detenção (ou prisão) ilegal ou arbitrária
- Tortura
- Execução sumária, arbitrária ou extrajudicial
- Desaparecimento forçado e ocultação de cadáver
- Uso de meios ilegais, desproporcionais ou desnecessários e falta de informação sobre os fundamentos da prisão
- Realização de prisões em massa
- Incomunicabilidade do preso
- Violência sexual, violência de gênero e violência contra crianças e adolescentes
- Homicídios com falsas versões de suicídios
Filmes como este deveriam ser exibidos em TODAS as aulas de História de TODAS as escolas. Porque, como bem disse Eunice Paiva àquela jornalista, as atrocidades cometidas no passado precisam ser conhecidas, para que não voltem a se repetir no futuro.

E não estamos falando de futuros improváveis ou difíceis de acontecer: vivemos, recentemente, durante o governo de Jair Bolsonaro, o claro risco de nova tentativa de golpe militar pairando sobre nossas cabeças. Vimos milhares de bolsonaristas acampados diante de quartéis clamando por uma ditadura. Há pessoas que realmente QUEREM viver aquelas atrocidades de novo – seja por ignorância, por má-fé ou por crueldade mesmo.
Por isso, é essencial que qualquer tentativa de golpe, que qualquer tentativa de crime contra o Estado Democrático de Direito, seja rapidamente contida e punida. Cometemos o erro grave, no passado, de anistiar os monstros que cometeram esses crimes – em vez de buscar uma punição para eles, como fizeram os argentinos e os alemães com os nazistas. Não podemos cometer o mesmo erro de novo.
Ditadura nunca mais! Punição imediata aos criminosos que querem a sua volta!
Obrigada, Walter Salles, por nos indignar com um pedaço de nossa vergonhosa história.
Ainda Estou Aqui foi indicado a 3 Oscars em 2025:
E venceu este prêmio histórico em destaque, o primeiro Oscar do Brasil:
- melhor filme do ano
- melhor filme internacional
- melhor atriz principal (Fernanda Torres)
Assista ao trailer do filme Ainda Estou Aqui:
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Será que vão fazer a historia do 8 de janeiro contando sobre as mães e pais presos pela ditadura comunista de 2023 ? hipocrisia… fanfarões, ninguem ganha nada com essa porcaria de oscar a não se eles mesmos. Vá chupar um canavial de ro…
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Oi, Anônimo. Não havia ditadura comunista no dia 8 de janeiro, havia um presidente democraticamente eleito, apesar de todas as tentativas de impedir sua eleição, inclusive com fechamento de rodovias. E os presos do dia 8 de janeiro eram pessoas que estavam cometendo crimes, inclusive atentando contra o Estado Democrático de Direito, e pedindo justamente a implantação de uma ditadura militar. Espero realmente que um dia façam um filme sobre esse descalabro que a gente viveu, quem sabe assim as pessoas parem de distorcer tanto a realidade.
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