‘O Conto da Aia’, de Margaret Atwood: leitura necessária e pesada

Cena da série "The Handmaid's Tale", baseada no livro de mesmo nome, "O Conto da Aia", de Margaret Atwood.
Cena da série "The Handmaid's Tale", baseada no livro de mesmo nome, "O Conto da Aia", de Margaret Atwood.

Comprei “O Conto da Aia“, de Margaret Atwood, há vários meses, ainda em janeiro, mas estava relutando em começar a leitura. O motivo é simples: como já escrevi aqui antes, embora as distopias sejam tão necessárias e didáticas, elas também são pesadas e duríssimas.

Eu estava adiando o momento de embarcar nesta jornada que eu sabia que seria difícil. Um ficção distópica, mas que mescla realidades de regimes ditatoriais fundamentalistas e perversos, como tantos que já vimos na História.

Na República de Gilead, retratada no livro, vemos mulheres sendo obrigadas a viver como concubinas de comandantes, com o “único” propósito de procriar.

Vemos mulheres sendo obrigadas a vestir as mesmas roupas, de mesmas cores berrantes (para evitar fugas), cobrindo cada pedaço de seu corpo, a andar do mesmo jeito, a falar sussurrando.

Vemos mulheres sendo impedidas de fazer quaisquer laços de amizade, proibidas de ler ou escrever, e até mesmo de girar a cabeça ao redor da paisagem para enxergar o mundo direito.

(Não demora muito para que a gente se lembre das burcas, impostas às mulheres afegãs pelos fundamentalistas religiosos autoritários do Talibã.)

Cena da série "The Handmaid's Tale", baseada no livro de mesmo nome, "O Conto da Aia", de Margaret Atwood.
Cena da série “The Handmaid’s Tale”, baseada no livro de mesmo nome, “O Conto da Aia”, de Margaret Atwood.

Vemos outras mulheres, que se recusam a seguir algumas das normas, ou cometem “pecados” gravíssimos, como o adultério, sendo usadas como prostitutas para o agrado dos homens dos altos escalões ou enviadas para “colônias”, para morrerem em poucos anos com trabalhos insalubres, como a limpeza de lixos tóxicos.

Vemos ainda um grupo de mulheres que prefere a proteção do Estado, em troca de “treinar” as outras mulheres para os horrores de um regime que prevê enforcamento em praça pública, promove linchamentos de “subversivos” e estimula a delação e a conspiração.

Como devem ter reparado, são as mulheres as principais vítimas da distopia de “O Conto de Aia”. Mas há graus entre elas, e entre as atrocidades a que estão sujeitas, muitas vezes parecidos com os graus que vemos em nossa sociedade democrática: quem tem mais poder, prestígio ou dinheiro se dá melhor.

A história segue assim, em seu tom pesado, com as reflexões em primeira pessoa da nossa narradora sem nome próprio, que nos faz sentir medo junto com ela – ou pânico, ou tristeza, ou desespero, ou nostalgia –, ao mesmo tempo em que não entrega tudo o que acontece de uma vez só.

Ou seja, ao mesmo tempo em que ela traz uma riqueza de detalhes em suas descrições (às vezes até excessivas e um pouco cansativas), ela não faz isso usando a narrativa tradicional e cronológica, factual ou informativa, o que nos deixa sempre com a necessidade de querermos saber mais detalhes ainda, para tentarmos entender como e por quê a situação chegou àquele ponto.

O que torna esse tipo de distopia ainda mais pesado (e também mais necessário) é justamente a sensação de que é um mundo não tão distante assim do nosso. De que é relativamente fácil um grupo de lunáticos usar uma desculpa qualquer, quase sempre inventada (comunistas? guerras? uma pandemia? desastre ambiental? baixa taxa de natalidade?), e inverter a ordem das coisas, e instaurar uma nova teocracia totalitária insuportável.

Foi o que aconteceu, por exemplo, no moderno Irã dos anos 80 e 90, como é descrito no ótimo livro “Persépolis“. E em tantas outras ditaduras malucas, à direita e à esquerda.

Cena de 'Persépolis'
Cena de ‘Persépolis’

Foi o que quase aconteceu, aliás, com nosso Brasil, nas mãos dos bolsonaristas, que incitaram seus fanáticos a acamparem em frente a quarteis do Exército, bradando por uma nova ditadura militar.

Terminei de ler “O Conto da Aia” com sensação parecida, portanto, com a que senti ao ler “Admirável Mundo Novo“, de Aldous Huxley, ou “Filhos de Sangue“, de Octavia E. Butler, dentre outros. De ter lido uma obra bem escrita, interessante, imaginativa, mas também assustadora, por todas as possibilidades que ela abre.

Que as pessoas leiam, sim, obras amargas como esta, desde que para refletir sobre toda uma sociedade que nunca podemos permitir que se torne real.

 

Capa do livro "O Conto da Aia", de Margaret AtwoodO Conto da Aia
Margaret Atwood
Ed. Rocco
366 páginas
R$ 48 na Amazon (preço consultado na data do post, sujeito a alteração)

P.S. “O Conto da Aia” foi originalmente publicado em 1985 e, em 2019, a autora lançou sua continuação, “Os Testamentos”, que ainda não li. A série “The Handmaid’s Tale” (que é o nome original do livro também) fez estrondoso sucesso, com quase 300 indicações a prêmios, 95 vitórias, com direito a 15 Emmys (o Oscar da TV). Com cinco temporadas, ela está disponível na Globoplay, Disney+, Amazon Prime Video e Paramount+. Mas não posso falar nada da série, porque ainda não vi. Se um dia eu assistir, claro, volto para comentar aqui 😉

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, escritora, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1, TV Globo, O Tempo etc), blogueira há mais de 20 anos, amante dos livros, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Autora dos livros A Vaga é Sua (Publifolha, 2010) e (Con)vivências (edição de autor, 2025). Antirracista e antifascista.

4 comments

  1. Lendo a sua resenha de “O Conto da Aia”, fiquei mais otimista com os tempos em que estamos vivendo no Brasil e no mundo. Poderia ter sido muito pior, se Lula não fosse hoje o presidente do Brasil e Trump continuasse presidindo os Estados Unidos.

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  2. Quando li O Conto da Aia, às vezes fazia pausas pelo mal-estar que me causava. Assim aconteceu quando vi a série também. A série peca apenas por ter se multiplicado em várias temporadas. A penúltima foi uma canseira. A última perdi o interesse de assistir. Mas a ambientação, figurino, fotografia e interpretações são muito boas!

    A sua frase “Como devem ter reparado, são as mulheres as principais vítimas da distopia de “O Conto de Aia”.” me fez lembrar Simone de Beauvoir: “⁠Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.”

    Tenho 2 volumes do “Os Testamentos” em casa, se você ainda não comprou, te presenteio com um.

    Beijos!

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    1. Pois é, causa um mal-estar danado na gente… A frase de Simone de Beauvoir é mais que certeira. Temos mesmo que nos manter vigilantes sobre nossos direitos, para sempre… E é claro que vou amar esse presente!!! 😀 Seus comentários entram sempre como “anônimo”, mas a gente deve se conhecer, certo? Beijos!

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