‘Enclausurado’: um dos narradores mais inusitados da literatura

Não posso reclamar de tédio com os narradores nos livros recentes que li. Teve o clone, a robô, o narrador que não se lembrava de nada porque uma névoa misteriosa bloqueava sua memória. Mas esta foi a primeira vez que li um texto narrado por um bebê ainda na barriga da mãe. Um feto.
Este feto não tem nome ainda, não enxerga, sente e pressente o mundo apenas por meio da audição. Mas é bastante observador. Vai sorvendo cada informaçãozinha que chega aos seus ouvidos, abafada pelo bater ritmado do coração de sua mãe.
O que não enxerga nem escuta, ele adivinha. Deduz. Perspicaz, às vezes a gente esquece que está lendo a narração irônica de um feto e pensa que é de um autor septuagenário mesmo, tipo o Ian McEwan. Liberdades literárias…
O estranhamento que toda essa sofisticação intelectual embrionária nos causa gera reações esperadas pelo autor do livro, propositais. Rimos do absurdo de alguns comentários do narrador-não nascido, como quando ele recomenda as melhores safras de vinho que já experimentou através de seu cordão umbilical. Ficamos estarrecidos em outros momentos, como quando ele descreve as repugnantes cenas de sexo a partir de seu ponto de vista intrauterino.
Seria bem chato se o livro reduzisse as 199 páginas apenas à voz desse feto insolente e aos outros três, quatro personagens que transitam em seu universo apertado. Mas o autor colocou um temperinho extra para tornar as reflexões do feto mais interessantes: o planejamento de um assassinato. Assim, ele se torna não apenas um narrador-observador, mas uma testemunha do planejamento de um crime. Que pode ou não se concretizar, porque outra graça da história é o suspense criado pelo autor, e não pretendo estragá-lo nesta resenha.
Assim, vocês estão diante de um livro que tem um dos narradores mais inusitados da literatura, que tem reflexões vindas de um ponto de vista jamais explorado (a barriga de uma mãe), que tem sarcasmo, humor e suspense. Ah, se toda clausura fosse assim!
Enclausurado
Ian McEwan
Tradução de Jorio Dauster
Editora Companhia das Letras, 2016
199 páginas
R$ 36,90
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Cristina Moreno de Castro Ver tudo
Mineira de Beagá, jornalista, blogueira, poeta, blueseira, atleticana, otimista, aprendendo a ser mãe. Redes: www.facebook.com/blogdakikacastro, twitter.com/kikacastro www.goodreads.com/kikacastro. Mais blog: http://www.otempo.com.br/blogs/19.180341 e http://www.brasilpost.com.br/cristina-moreno-de-castro
Esse autor é demais! Li há pouco, dele, o “Máquinas como eu”, que recomendo muitíssimo.
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Oba, viu pôr na lista! Eu já li só este e “Reparação”. E comprei outros dois para ler: Amsterdã e Serena.
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Leia “o inocente”, do mesmo autor, Cris! Vc não vai acreditar no que acontece! É um enredo que te dá um nocaute e quebra todos os seus dentes!
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Puxa, com essa descrição que vc fez, tenho que ler mesmo!!! Já tenho dois na fila dele: Amsterdã e Serena. Vou caçar este também 🙂
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