‘A Outra Filha’, de Annie Ernaux: um fantasma no meio do caminho

Annie Ernaux e sua mãe, em foto na capa do livro autobiográfico 'A Outra Filha'
Annie Ernaux e sua mãe, em foto na capa do livro autobiográfico 'A Outra Filha'

Prometi que, quando lesse mais obras de Annie Ernaux, eu as acrescentaria naquele mesmo post que entrou aqui no blog no mês passado, lembram? 😉

Fiz isso, mas achei que valia criar um post separado só para “A Outra Filha” também. Foi o quarto livro da Nobel de literatura que devorei de dezembro pra cá.

Este tem o formato de uma carta, que Annie escreve para sua irmã – morta aos 6 anos, antes de ela nascer.

As palavras dirigidas à menina morta são frias, e em vários momentos captei um misto de raiva, rancor, ciúmes ou, no mínimo, uma amargura em relação à irmã mais velha e nunca conhecida.
O motivo para isso é explicado logo no início do livro-carta: uma frase que a mãe solta para outra mulher, que Annie escuta sem querer, e que coloca um peso enorme em suas costas pela vida afora, impactando tanto a forma como ela vê a si própria quanto seu relacionamento com os pais.
Essa história se passa em uma época em que, “de acordo com uma regra implícita, era proibido questionar os pais, os adultos de um modo geral, sobre coisas que eles não queriam que soubéssemos, mas que sabíamos“.
Sinto que teria sido tão melhor para Annie e seus pais se essa ficção não tivesse sido mantida, se tivessem simplesmente conversado abertamente sobre a irmã/filha que morreu criança, que foi privada da vida, em vez de fingir que isso nunca aconteceu…!
A vida de Annie, certamente, teria sido mais leve, sem esse misto de culpa e medo que ela sentiu tantas vezes. Sem esse trauma.
Este é um livreto curto, como todos de Annie, e tão profundo quanto os demais, ao abordar questões como o peso da morte para uma família, a dor de pais enlutados, a questão de classe (presente em todas as obras de Annie que já li), a construção de uma memória, o afeto (ou ausência dele) entre familiares, as intrincadas teias que costuram os relacionamentos. A importância dos diálogos claros.
É quase um trabalho de psicanálise.
Desta vez, em vez de apenas recorrer à própria memória, a escritora também usa o recurso de analisar fotografias antigas, e imaginar situações, sentimentos e explicações relacionados a um período em que ela nem tinha nascido ainda.
Eu vim ao mundo porque você morreu e eu te substituí“, desfere ela, neste texto duro e mordaz. Por outro lado, ela atribui à oportunidade de vida que a irmã lhe deu o fato de ter começado a escrever.
Não escrevo porque você morreu. Você morreu para que eu escreva, eis aqui uma grande diferença“.
Este livro mesmo ela vê como uma forma de “liquidar uma dívida” para com a irmã ao dar a ela uma existência. “Ou então fazer você reviver e morrer outra vez só para me libertar de você, de sua sombra“.
Pesado? Muito. E, no entanto, Annie insiste em dizer que não sente nada pela irmã, nem ódio nem ternura. “Uma brancura de sentimentos. Uma neutralidade“.
Não é isso que vemos nesta carta. Ela não é neutra, ou a mim não me pareceu assim. Annie é toda sentimentos, da infância à velhice, e muito graças a esse fantasma Peter Pan.
Capa do livro A Outra Filha, de Annie Ernaux“A Outra Filha”
Annie Ernaux
ed. Fósforo
61 páginas
R$ 48 na Amazon (preço consultado na data do post; sujeito a alterações)

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, escritora, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1, TV Globo, O Tempo etc), blogueira há mais de 20 anos, amante dos livros, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Autora dos livros A Vaga é Sua (Publifolha, 2010) e (Con)vivências (edição de autor, 2025). Antirracista e antifascista.

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