‘Asteroid City’: Não precisa entender, continue vivendo

Asteroid City, de Wes Anderson, tem grande elenco
Asteroid City, de Wes Anderson, tem grande elenco

Vale ver no cinema: ASTEROID CITY
2023 | 1h45 de duração | nota 8

Comecei a assistir ao filme um pouco angustiada, pensando que tinha caído na mesma armadilha de “O Grande Hotel Budapeste“, outro de Wes Anderson, que me decepcionou por sua estética sem conteúdo.

Também desta vez, a estética do filme é impressionante. Provavelmente vai abocanhar vários prêmios relacionados a isso no próximo Oscar, como figurino e design de produção.

Asteroid City” também é cheio de cores vibrantes, enche nossos olhos a cada frame, com aquele enquadramento ultracentralizado e super organizado do diretor. Parece que ele pensa em cada cena em minúcias e quer nos apresentar alguns segundos de cada vez, para termos tempo de absorver tudo.

Alguns dos frames do filme Asteroid City, que mostram a preferência de Wes Anderson por enquadramentos centralizados e muitas cores nas cenas.
Alguns dos frames do filme Asteroid City, que mostram a preferência de Wes Anderson por enquadramentos centralizados e muitas cores nas cenas.

Outra coisa em comum com “O Grande Hotel Budapeste” são os personagens excêntricos, interpretados por atores e atrizes maravilhosos, muitos dos quais já indicados ou premiados com Oscars. Mas, de novo, com exceção do protagonista Jason Schwartzman, que faz Augie, e de Scarlett Johansson, que faz a celebridade Midge Campbell, as outras estrelas são praticamente figurantes: Tom Hanks, Jeffrey Wright, Edward Norton, Bryan Cranston, Steve Carell, Tilda Swinton, Adrien Brody, Hong Chau, Margot Robbie, Tony Revolori (o herói do outro filme) e Maya Hawke, famosa por “Stranger Things“.

A história de “Asteroid City” também foi dividida em capítulos. Ou seja, eram muitas semelhanças com minha outra referência imediata do mesmo diretor: a estética, os tipos de personagens, os vários atores em comum, os enquadramentos, a forma como a história estava sendo contada. Isso é que é vontade de criar uma marca própria, hein, Wes!

A diferença foi que, desta vez, achei o roteiro mais interessante. A começar, pela metalinguagem. Temos um apresentador de TV contando a história de uma peça de teatro que é a história de Asteroid City propriamente dita. Uma história dentro de uma história dentro de outra história: quase multiversos, tão em voga no pensamento artístico de hoje.

Um resumo bem resumido e sem spoilers: uma competição acadêmica de adolescentes geniais, numa cidade perdida no meio do deserto, é interrompida por um evento extraordinário que vai obrigar todo mundo a ficar em uma quarentena forçada (a propósito, esta ideia da quarentena foi incluída no roteiro por causa da experiência com a Covid-19, que estava acontecendo na época da produção). Um desses adolescentes está com as irmãzinhas e um pai, todos em luto após a morte da mãe.

O roteiro, que mistura comédia, drama e ficção científica, abre espaço para pensarmos, ainda que sem grandes pretensões, em temas mais profundos, como a morte, o amor, a adequação, a ressignificação da vida, e até o sentido desta diante de um universo tão misterioso e extraordinário.

O cenário principal colorido, em tons pasteis, do filme Asteroid City, de Wes Anderson.
O cenário principal colorido, em tons pasteis, do filme Asteroid City, de Wes Anderson.

‘You can’t wake up if you don’t fall asleep’

O mais legal desse tipo de história é que dá margem para várias interpretações. Já li resenhas que falam que o tema principal do roteiro é o luto. Eu acho que é um assunto importante no filme, que tem duas mortes, mas não foi o que me bateu como principal.

Pra mim, a mensagem mais importante que ele traz está neste breve diálogo entre o ator que faz Augie e o diretor da peça:

– Ainda não entendo a peça.

– Não importa. Apenas continue contando a história.

Enxerguei aí um paralelo claro com a vida, com o mundo, com todas essas loucuras que vivemos e muitas vezes nos parecem completamente sem sentido. Queremos entender essa “peça” a qualquer custo, mas talvez o melhor seja apenas seguir contando nossas histórias, façam elas sentido ou não.

A verdade é que muita coisa a gente nunca vai entender mesmo.

Essa mesma mensagem reverbera na cena, muito bizarra, em que ouvimos várias pessoas repetindo esta mesma frase:

“You can’t wake up if you don’t fall asleep”.

Ou “Você não pode acordar se não adormecer”. Foi parar na canção de Jarvis Cocker, com o mesmo nome, que faz parte da trilha sonora e também deve ser indicada ao Oscar:

A letra desta música traz mais pistas sobre a minha interpretação. Veja ela já traduzida:

Você não pode acordar se não adormecer
Você não pode se apaixonar e cair de pé
Você não sentirá o cheiro das rosas se nunca plantar uma semente
E você não pode acordar se não adormecer

Você não pode fazer uma entrada se continuar perdendo sua deixa
Você não escolherá um vencedor até aprender a escolher
Você nunca encontra um tesouro a menos que você cave fundo
E você não pode acordar se não adormecer

Oh, você nunca terá memórias dignas de serem guardadas
Oh, você nunca encontrará a verdade que está procurando
Enquanto você está dormindo

Mas você não pode acordar se não adormecer
Então vá viver seus sonhos e viva-os profundamente
Há alguns contando dinheiro e há alguns contando ovelhas
Oh, você não pode acordar se não adormecer
Se você não adormecer

É impossível criar memórias importantes ou “encontrar a verdade” enquanto você dorme, mas é importantíssimo dormir. Assim como cavar por horas é um saco, mas só assim você pode encontrar o tesouro enterrado.

Talvez nosso sono coletivo seja esta vida louca que estamos todos vivendo nesta Terra, que a gente não entende, mas que deve ser vivida. Uma dia talvez tenhamos uma compreensão mais profunda, esse acordar de que ele fala, mas, para isso, precisamos antes viver profundamente nossos sonhos. (Ou talvez a gente nunca acorde, nunca encontre tesouro nenhum, mas ainda está ao nosso alcance dormir – ou continuar cavando.)

Fez sentido para você? Ou isso tudo parece uma viagem doida? 😀

Pode ser mesmo que, no fim das contas, o filme seja só aquele entretenimento leve e colorido, com várias cenas de comédia até meio pastelão, e sem qualquer mensagem profunda por trás disso tudo. O E.T. propositalmente tosco indicaria essa intenção. E tudo bem, também.

Mas que bom que a imaginação humana permite devaneios e múltiplas possibilidades mesmo diante das histórias mais simples. Foi graças a isso tudo em que o filme me fez refletir desde que assisti a ele no cinema, que resolvi dar a nota 8. Concluí que, no fim das contas, ele foi bem melhor que aquele hotel da fictícia República de Zubrowka.

 

Assista ao trailer de Asteroid City:

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

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