Demorei mais tempo a engrenar na leitura de “A Natureza da Mordida” do que nos dois livros anteriores de Carla Madeira que eu já havia lido: Tudo é Rio e Véspera.
Depois entendi por quê. Como parece ser já de praxe na escrita de Carla, o livro intercala vozes e estilos narrativos. Temos aqui duas narradoras: Olívia, uma jovem jornalista, e Biá, uma senhora com sinais de demência.
Exceto pela primeiríssima anotação de Biá, que abre o livro e conta como as duas se conheceram e se aproximaram, todas as demais são incompreensíveis até que o livro termine de ser amarrado completamente, com todos os mistérios resolvidos ao leitor, sem mais pontas soltas.
É por isso que, até a página 85, eu ainda não estava muito presa à história: a narrativa de Olívia era entremeada de palavras que me pareciam sem sentido, vindas das anotações de Biá. Ou com sentidos ainda muito velados, como mensagens cifradas, que não foram escritas para nossa compreensão.
Eis que, a esta altura do livro, mais precisamente entre as páginas 94 e 157, Olívia desanda a contar sua história. Em ordem cronológica mesmo, bonitinha, até destacada com itálico. E aí, meus amigos, entrei de cabeça, mergulhei sem nem pegar fôlego antes.
Ficamos conhecendo melhor Rita, Laura, Luciana, Catarina, Violeta… personagens que vinham sendo entregues até então às migalhas, num mistério insistente.
É finalmente aí, nesta parte do livro, que descobrimos o que tanto afligia Olívia quando Biá a encontrou pela primeira vez.
Resta, então, desvendar os mistérios em torno da velha senhora. O que aconteceu com ela? E com sua filha? Ela parece obstinada em nunca contar a ninguém seu passado, mas, mais para o fim do livro, o quebra-cabeças fica todo completo. Passamos a entender também os mistérios de Biá.
E foi nessa hora que eu fiz uma coisa incrível, que recomendo a todos os leitores: voltei ao começo do livro e fui relendo todas as anotações de Biá, aqueles capítulos curtos que me pareciam tão sem sentido antes, e atravancaram minha leitura. Foi bom vê-los sob nova luz, inteiriços, agora totalmente compreensíveis.
(Sugiro a Carla Madeira fazer uma segunda versão desse livro, para leitores com mais mania de organização, como eu, colocando as anotações de Biá fechadas em um envelope, para ser aberto só depois de tudo.)
Mas pensam que os mistérios todos se resolvem? Não, fica faltando uma última pecinha. O que motivou o abandono de Olívia. (Sim, porque este é um livro sobre o abandono. Sobre as várias facetas do abandono, e os estragos e caos que ele deixa para trás.) E este último mistério é revelado em meio a uma fagulha de lucidez, um raio que passa pela mente brilhante de Biá enquanto ela ouvia o relato da amiga.
No fim das contas, estava ali, na cara de todos nós, como naquelas novelas da Agatha Christie em que as pistas são deixadas diante dos leitores para, quando Poirot revela o assassino, todos sentirmos aquele estalo feliz: “Como não vi isso antes?”
É o abandono que une essas duas mulheres de gerações diferentes, mas a amizade que se constrói entre elas, calcada em muito respeito, é capaz de gerar consequências que mudam pelo menos quatro vidas. E isso é muito comovente.
“Um único minuto de reconciliação vale mais do que toda uma vida de amizade.”
Esta frase, uma das muitas que Biá pega emprestado da literatura, me fez pensar um bocado. No fim das contas, este livro não é só sobre abandono e amizade: é também sobre sermos capazes de nos reconciliar com nosso passado. E com todas as pessoas que fazem parte dele.
“A Natureza da Mordida”
Carla Madeira
Ed. Record
238 páginas
R$ 45,24 na Amazon
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olá, Cristina!
realmente é um livro para se ler e reler as entrelinhas!
Ainda não consegui entender muito bem pq Teodoro foi embora. Qual medo de machucar a filha ele tinha? O que você entendeu?
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Olá! Entendi que ele tinha medo de ter desejos sexuais por ela, por causa dos sonhos que teve, e de eles extrapolarem o campo dos sonhos.
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Também compreendi assim.
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