Este livro é uma enxurrada.
Você começa a ler e percebe as palavras jorrando, fluindo, sem muito tempo para respirar.
Uma palavra te leva à outra que leva à outra, que leva ao parágrafo seguinte e, quando vê, você já navegou por dezenas de páginas num piscar de olhos, completamente mergulhada na leitura.
(Já reparou quantas metáforas usam termos náuticos e molhados? Tudo é rio, risos).
A leitura de Carla Madeira me foi fortemente recomendada por duas mulheres incríveis que conheço. Já fui ler com as expectativas nas alturas – o que sempre é um risco. Afinal, gosto é um trem muito subjetivo.
Preferi começar por este sucesso editorial sem saber nada sobre ele antes. Fui ler às cegas, sem saber nem de que gênero era.
Já na primeira palavra, fui pega pelo laço. Conheci Lucy, a personagem mais desvairada e vulgar e egoísta que já vi na vida.
Nas páginas seguintes, fui conhecendo Dalva e Venâncio, o casal perfeito que se encerrou numa tragédia.
Teoricamente era para este trio conter os personagens principais do livro, mas aí veio Aurora, com seus borbotões de sabedoria.
E, em meio a uma história de amores, tristezas e ódios que já nos seguraria sozinha, que já tinha seus mistérios, que já tinha seu vaivém temporal para nos deixar em suspense, para nos fazer querer entender melhor aqueles personagens, ainda fomos premiados com pílulas de reflexões se entremeando. Pérolas como estas, que pincei aqui ao acaso:
“O que mais existe no mundo são pessoas que nunca vão se conhecer. Nasceram em um lugar distante, e o acaso não fará com que se cruzem. Um desperdício. Muitos desses encontros destinados a não acontecer poderiam ter sido arrebatadores. Por afinidade, por atração que não se explica, por força das circunstâncias, por químicas ocultas, quem pode saber? Quanto amor se perde nessa falta de sincronia.”
“Quem vê de fora faz arranjos melhores, mas é dentro, bem no lugar que a gente não vê, que o não dar conta ocupa tudo.”
“Pedir a Deus para não sofrer é como pedir para voar. Mas a gente pede assim mesmo e depois fica com raiva do pobre coitado. O sofrimento é certo como a morte e tão inegociável quanto.”
“Algumas vezes as mudanças acontecem na marra. Uma guilhotina afiada corta as nossas mãos, e todas as rédeas escapam. É o que pensamos ter acontecido, até que a gente se dá conta de que nunca houve rédeas. Ninguém monta na vida. Brincamos de escolher, brincamos de poder conduzir o destino. Precisamos dessa ilusão para viver os dias de antes, dias em que podemos tudo só porque pensamos poder, e então a vontade do que está fora da gente joga sua sombra densa e pegajosa.”
Enfim, este livro é isso: é história, mas é também poesia. É um monte de palavras bonitas e bem costuradas, de diálogos e pensamentos que invadem a narrativa em terceira pessoa, e a gente vai sorvendo tudo como quem sorve um café gostoso e quentinho. Mesmo nas partes mais insólitas, mesmo nas mais pornográficas (porque elas existem, já que uma das personagens é uma puta), temos uma beleza e um jeito de contar a vida que só os grandes escritores possuem.
Por tudo isso, “Tudo é rio” já nasceu um clássico. E já estou ansiosa para ler os próximos desta escritora tão grande, que calhou de ser de Beagá, mas agora é também do Brasil inteiro.
Tudo é rio
Carla Madeira
Ed. Record
209 págs.
R$ 37,94
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