‘O famoso e o infame’, por Douglas Garcia

Caetano Veloso em sua live de natal, em 19/12/2020. Foto: Reprodução

Hoje o Douglas Garcia, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e grande colaborador deste blog, traz mais uma de suas valiosas contribuições, depois de assistir à maravilhosa live de Caetano Veloso no último sábado (19). São reflexões importantes para os tempos que vivemos. Confira a seguir.

Caetano Veloso em sua live de natal, em 19/12/2020. Para Douglas Garcia, “Caetano é famoso por suas ações e palavras, que inspiram o início, o amor e a esperança na continuidade da vida no futuro.” Foto: Reprodução

O famoso e o infame

 Douglas Garcia

Caetano Veloso é um famoso cantor e compositor brasileiro. Ele também é escritor e cineasta. Todos conhecem Caetano, sua carreira vem desde ao menos 1967, data de sua canção “Alegria, alegria”, que tem os inesquecíveis versos “caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento”. Ouvíamos Caetano no rádio, agora ouvimos nos celulares e em todos os aparelhos de mídia.

No último sábado, 19 de dezembro de 2020, ele presenteou o público brasileiro com uma live em que cantou e tocou algumas das obras-primas de sua longa carreira (assista abaixo).

Para minha surpresa, mas ao mesmo tempo, de modo coerente com sua grande cultura humanística, durante a live ele falou da filósofa Hannah Arendt, e de seu livro “A Condição Humana”. Ele aludiu ao conceito de “início”, central na filosofia de Arendt, que indica que a mais humana das faculdades é a de iniciar coisas no mundo, em ação conjunta, ampliando seus horizontes e significado.

No registro do conceito de início, Arendt fala da “fama imorredoura”, que os gregos chamavam kleos, e que designa as palavras e atos que se destacam entre o comum dos mortais, ficando gravados na memória de gerações futuras.

Caetano ficou emocionado com a homenagem de uma criança de seis anos, Lilica Rocha, que lhe enviara um vídeo em que canta e toca sua música “Tigresa”. Se apenas essa criança restar no mundo, ela já será a garantia que Caetano será lembrado no final deste século e no início do século seguinte.

Ocorre que Caetano tem milhões de ouvintes no mundo, que admiram a sua poesia e sua música e a transmitem a seus filhos, às crianças. Caetano é como um aedo grego. Ele será lembrado por décadas e décadas.

A antítese da fama não é a ausência de fama, mas a infâmia. Para não deixar dúvida quanto ao sentido da palavra, recorro ao dicionário Caldas Aulete:

“infâmia: “característica, qualidade ou condição de infame”. Ainda o Caldas Aulete: “infame: de má fama; diz-se de quem merece desprezo, indigno, torpe, vil; reprovável, condenável; que causa aversão ou repulsa por falta de qualidade ou de recato, ou por ferir a sensibilidade ou os valores das pessoas. Do latim infamis”.

O dicionário delimita a qualidade do infame: não é que ele não tenha fama. Ele tem uma má fama. Ele causa repulsa, desprezo, aversão. Isso já delimita as coisas, mas não o suficiente. Alguém pode causar repulsa a um grupo, mas ser bem visto por outro grupo, talvez por ser da mesma cidade, da mesma família ou do mesmo time de quem não sente repulsa por suas ações.

Não é só isso o infame, nos ensina o dicionário: ele não apenas causa aversão, mas também merece desprezo, e isso por manifestar algumas características em suas ações: “falta de qualidade ou de recato”, e também “ferir a sensibilidade ou os valores das pessoas”.

Vamos nos deter um pouco mais nisso, pois não há uma avaliação somente subjetiva, que pode variar entre grupos e pessoas, mas uma avaliação objetiva: quem é infame efetivamente realiza, em palavras e atos, ações que demonstram ou falta de “qualidade”, isto é, ausência de virtudes humanas universais como inteligência, bondade, senso de justiça; ou falta de “recato” (que é pudor, honestidade, simplicidade); ou, ainda, atos e palavras que ferem “a sensibilidade ou os valores das pessoas” – valores que são universais, como o respeito, a dignidade individual, a autonomia e a inviolabilidade do corpo.

Se o famoso é conservado na memória e transmitido às crianças pelo vínculo do amor admirativo, o infame é esquecido e dele se deseja que as crianças se afastem e não recolham nem as palavras, nem os gestos, nem as atitudes.

Caetano é famoso por suas ações e palavras, que inspiram o início, o amor e a esperança na continuidade da vida no futuro.

E o infame? Quem é infame? Por que é infame? Por quais atos e palavras? Cada um deve pensar nisso por si só, lição de Hannah Arendt, citada por Caetano. Mas é preciso que conversemos sobre isso, que cheguemos a certos padrões mínimos de civilização que recusem a adesão ou a indiferença ao que é infame, às ações infames, às palavras infames.

Aqueles que na atual política brasileira não se preocupam com uma perspectiva humana das coisas o fazem por atos e palavras infames, que faltam com a bondade, o respeito e a dignidade.

Será possível reconhecer a fama e deixar de identificar a infâmia, quando ela se mostra?

 

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

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