Três gênios desacreditados

Aquela jovem de 26 anos, que trabalhava em um hospital e numa farmácia, tinha, na verdade, o sonho de se tornar escritora. Escreveu seu primeiro romance, com 223 páginas, e, sendo aquele o início do século 20, parecia chocante que aquela moça tivesse escrito, na verdade, um texto policial, com assassinatos cruéis, e daquela cabeça tivesse surgido um detetive belga com cabeça de ovo e células cinzentas tão ativas. Ela enviou o manuscrito a seis editoras, e todas recusaram a publicação. Até que uma pequena editora resolveu dar uma chance à jovem e o livro logo vendeu 2.000 cópias. Desde aquele primeiro, Agatha Christie publicou outros mais de 80 livros, entre romances policiais, peças de teatro e contos, foi traduzida para 103 idiomas e vendeu mais de 4 bilhões de livros, sendo o maior sucesso literário do planeta, atrás apenas de Shakespeare e da Bíblia.

Fonte: aliceecila.tumblr.com
Fonte: aliceecila.tumblr.com

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Aquele senhor de 60 anos já tinha filmado dezenas de filmes, nos maiores estúdios de Hollywood, e ouvia por todos os lados que era hora de se aposentar. Afinal, ele estava no auge da carreira, não tinha mais nada a provar para atestar seu brilhantismo. Obstinado, ele queria provar, sim, que ainda tinha muito a fazer. Descobriu um livro que se tornaria um roteiro interessantíssimo e o apresentou ao estúdio Paramount, que se recusou a bancar a história, considerada ousada demais. Para conseguir bancar a produção, ele resolveu penhorar a própria casa (uma mansão), dando o imóvel como garantia caso o filme não revertesse na bilheteria seus investimentos. Apesar do grande risco de fracasso, ele teve apoio integral de sua esposa. O filme em questão, “Psicose”, acabou virando justamente o maior sucesso da carreira de Alfred Hitchcock, foi considerado por várias revistas especializadas como um dos melhores filmes de todos os tempos e seu investimento, de US$ 800 mil, foi em muito superado pelo faturamento de US$ 50 milhões nas bilheterias do mundo inteiro.

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Aquele jornalista de 38 anos já tinha conseguido publicar quatro livros, mas de repente decidiu largar tudo, ao longo de 18 meses, para escrever o quinto livro de sua vida. Naquele longo período sem ganhar nem um centavo de nenhum lugar, enquanto escrevia seu romance, aquele jornalista, que tinha uma mulher e dois filhos, quase passou fome. Aos poucos tiveram que empenhar coisas da casa, para garantir o sustento. Até que “foi preciso apelar para as joias que Mercedes havia recebido de seus familiares ao longo dos anos. O especialista as examinou com um rigor de cirurgião, pesou e revisou com seu olho mágico os diamantes dos brincos, as esmeraldas de um colar, os rubis dos anéis, e no final devolveu tudo com um longo gestou de toureiro: ‘Tudo isso é vidro puro’. Nos momentos de dificuldades maiores, Mercedes fez suas contas astrais e disse ao paciente senhorio, sem um mínimo tremor na voz: ‘Podemos pagar tudo de uma vez dentro de seis meses.'” O senhorio concordou, dizendo: “‘Muito bem, senhora. Sua palavra é suficiente.’ E fez suas contas fatais: ‘Eu a espero no dia sete de setembro'”. Quando o calhamaço finalmente ficou pronto, em sua última versão, cheia de borrões num papel vagabundo, ele pediu a uma datilógrafa para passá-lo a limpo, para a entrega à editora. Quando ela levava aquele manuscrito para casa, “escorregou ao descer do ônibus em um aguaceiro de dilúvio e as páginas ficaram flutuando em uma poça da rua. Com a ajuda de outros passageiros, ela as recolheu empapadas e quase ilegíveis, e secou-as em casa, folha por folha, com um ferro de passar roupa.” Finalmente, no começo de agosto, já perto do prazo final concedido pelo senhorio, o jornalista e sua mulher, a brava Mercedes, foram até uma agência dos Correios com a versão terminada do livro, em 590 laudas, para enviá-la ao diretor literário da Editorial Sudamericana, em Buenos Aires. “O funcionário do correio pôs o pacote na balança, fez seus cálculos mentais e disse: ‘São oitenta e dois pesos’. Mercedes contou as notas e as moedas soltas que tinham sobrado em sua carteira e enfrentou a realidade: ‘Só temos cinquenta e três.'” O jornalista e a mulher decidiram, então, abrir o pacote, dividir o conteúdo em duas partes iguais, e enviar uma delas ao editor argentino. “Só mais tarde percebemos que não tínhamos mandado a primeira parte, e sim a segunda. Mas antes que conseguíssemos o dinheiro para mandá-la, Paco Porrúa, nosso homem na Editorial Sudamericana, ansioso para ler a primeira metade do livro, nos antecipou dinheiro para que pudéssemos mandá-la.”

E foi assim que o mundo ganhou o clássico “Cem Anos de Solidão”, nas palavras do próprio Gabriel García Márquez, em um daqueles seus fabulosos discursos, de que já falei aqui no blog ontem e anteontem. “Cem Anos de Solidão” já vendeu mais de 30 milhões de exemplares, traduzidos em 35 idiomas, e é considerado um dos livros mais importantes da literatura mundial. Muito por causa dele, Gabo recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1982, com apenas 55 anos.

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O que tiro dessas três histórias de vida: se até os gênios passam por percalços enormes, são desacreditados ou não ganham o devido reconhecimento em algum momento de suas vidas, que dirá nós, os meros normais. Outra coisa que eu tiro dessas incríveis histórias por trás das grandes histórias é que, quando acreditamos em nosso potencial, é preciso fazer apostas, mesmo que custem um enorme aperto financeiro ou o risco de perder a casa. Também tiro que não existe idade certa para fazermos a grande obra de nossas vidas. O sucesso pode começar desde os 26 anos, como foi com Agatha Christie, ou pode chegar de forma estrondosa depois dos 60. Por fim, se não fosse a fé depositada nesses três talentos, por eles próprios e por seus companheiros, teríamos ficado sem Hercule Poirot, sem Psicose e sem Cem Anos de Solidão — e o mundo seria infinitamente mais sem graça.


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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, escritora, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1, TV Globo, O Tempo etc), blogueira há mais de 20 anos, amante dos livros, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Autora dos livros A Vaga é Sua (Publifolha, 2010) e (Con)vivências (edição de autor, 2025). Antirracista e antifascista.

4 comments

      1. Mas é importante também ter o distanciamento emotivo suficiente pra avaliar se a sua obra realmente vale o sacrificio. As vezes é dificil separar a sua história, que é sua filha praticamente, do que pode se tornar mais comercial.

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