Já adianto de cara: “Dentes” é um livro daquele tipo angustiante, com várias passagens de dor. Só não é do tipo que a gente abandona no meio porque seu protagonista, narrador em primeira pessoa, descreve seus sentimentos, pensamentos, obsessões, medos, memórias, fantasias e outras agruras de uma forma muito leve, muuuuito rápida também, quase sempre autoirônica.
Assim começa o livro de Domenico Starnone:
“No início da tarde do dia 6 de março de três anos atrás, perdi dois incisivos numa tacada só. Eram os que me serviam para pronunciar meu nome. Tinha dito a Mara: ‘Chega, não quero te ver nunca mais’. Ela respondeu não com palavras, mas com o cinzeiro. Agarrou-o pela borda de repente e golpeou meus dentes, com bitucas e tudo. Depois foi chorar no quarto.”
Nota-se que estamos diante de um relacionamento cheio de violência, que hoje chamamos de “relacionamento tóxico“. Nas páginas seguinte, acompanhamos como o narrador tenta resolver o problema dos dentes (e a dor absurda que surge dessa agressão), ao mesmo tempo em que nos expõe os ciúmes obsessivos que sente pela amante Mara, o trauma que sente por ser dentuço (sim, o problema com os dentes é muito maior que esse caso do cinzeiro) e outros episódios de sua vida.
Não sei se é um livro que eu leria, pra começo de conversa. Das 176 páginas, umas 175 devem fazer referências ao universo odontológico. Sendo metáfora ou apenas ponto de partida para tratar de outros temas (relacionamentos amorosos, principalmente, mas também familiares), o fato é que as palavras “dente” ou “dentes” aparecem 209 vezes; “dentista”, 93, “gengiva”, 57, “boca”, 227, “língua”, 44, “lábios”, 34… – deu pra entender, né?
Esses termos vão sendo repisados freneticamente, junto a outros menos conhecidas da odontologia, gerando uma sensação de cansaço na gente, do lado de cá do livro (no meu caso, da tela).
Outra coisa que chama a atenção no texto é o tanto que o autor usa o recurso das onomatopeias. A cada par de páginas nos deparamos com um som traduzido em expressões como za-zza, za-zza, Uargh! Uargh!, ziir, sbonk, sgriiiim, sgriiim, Vu, vu, vu!, slot slot slot, e assim por diante. Em alguns momentos, o recurso é usado para ilustrar como o narrador estava falando embolado, incompreensivelmente, sem seus dentes. Fora isso, parece só um cacoete mesmo.
O próprio nome do personagem, se não me engano, nunca é dito. Fica naquele “Oico”, que é a forma como entendem que ele se chama, quando ele tenta pronunciar o próprio nome.
Apesar desse estilo tão repetitivo, a narrativa, como eu já disse, é bastante rápida. Os pensamentos do professor “Oico”, que narra a desventura, pulam sem aviso prévio entre o presente e o passado, entre sua realidade de agora e sua vivência quando criança ou adolescente. Mas a prosa de Domenico Starnone é tão fluida que a gente não se perde nem por um minuto: é como se aquele “soluço” lógico ou temporal nunca tivesse existido.
Foi assim que devorei este livro (com meus dentes, quase) em apenas três dias. A pressa, na verdade, tem uma explicação maior do que a fome da leitura. É que este foi o livro escolhido para a terceira edição do Clube do Livro da melhor biblioteca de BH. Vai ser a primeira vez que vou participar de um clube de leitura – e estou animada com o que vou ouvir naquela roda de pessoas que também são leitoras vorazes.
Será que têm explicações melhores para a intenção de Domenico Starnone com seu “Dentes”? Logo descobrirei 🙂
Dentes
Domenico Starnone
Ed. Todavia
176 páginas
R$ 55,75 na Amazon (preço consultado na data do post, sujeito a alteração)
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