‘À Vontade’, de Flávia Lamary: a volta do encanto pela poesia

Começo este post dizendo que não tenho mais o hábito de ler poemas (como eu tinha quando era adolescente e jovem). Basta ver que, de 2022 para cá, já li 85 livros – e só dois eram de poesia.

O motivo é que tenho achado os livros de poesia que chegam até mim muito herméticos. Como se os autores estivessem falando para serem entendidos só por eles próprios. Inalcançáveis para os pobres leitores do lado de fora de suas cabeças.

Como já passo o dia inteiro envolta em textos, de todos os tipos, por causa do meu trabalho, prefiro chegar à noite e me debruçar sobre livros bem escritos, já cansada demais para matar charadas.

Dito isto, resolvi ler “À Vontade“, de Flávia Lamary, numa noite de sábado em que eu estava bem… à vontade. Comecei a leitura numa mesinha de canto de um restaurante que eu gosto, tomando uma taça de vinho, à espera do início do filme que eu veria dali a pouco no cinema.

Um garçom simpático trouxe um pequeno abajur para minha mesa. O restaurante estava deserto, e fui lendo sossegada, em silêncio, sem interrupções, parando apenas porque a sessão já ia começar.

Não sei se foram todas essas condições favoráveis, mas gostei muito do texto da Flávia – minha conterrânea, que já vi em alguns dos encontros literários da Marina Borges (aliás, a Marina disse que ajudou o livro da amiga a nascer, e assina no expediente como “coordenadora editorial”).

O que mais gostei é que ela escreve para ser compreendida. Suas palavras são econômicas, simples, diretas. O grande mérito de seus poemas está no “clique” mental que eles geram, no encaixe perfeito de suas boas sacadas.

Por exemplo, quando ela diz que a lua cheia é um “farol”, que “acende sentimentos”. Clique.

Ou quando diz que “a pessoa bem resolvida aprendeu a contar”. Clique.

O poema “microscópio”, por exemplo, é uma enxurrada de cliques:

“Sem o olhar, o mundo se reduz
ao tamanho que é.
Que pequeno ele fica!”

(…) “Talvez a montanha,
sabendo-se vista,
seria menos montanha,
plana.”

“O olhar faz o visto
querer ser.
Solidão é desaparecer,
vivo.”

(Clique, clique, clique.)

Essas sacadas não acontecem em toooodos os poemas, mas em muitos.

“respiramos despidos”

“de todas as verdades
a realidade é a que menos se nota.”

“o universo faz recall de certezas.”

É um poema atrás do outro que mexe com a nossa lógica, gerando esses encaixes perfeitos em pouquíssimas linhas.

Um deles, por exemplo, resume, de forma brilhante, a diferença entre privilégio, poder e muito poder.

Outro, em apenas duas frases, traduz o que é saudade (!).

E assim vamos seguindo, em meio a versos sobre amor, sobre a vida, a rotina, a família, a própria poesia. Quando vemos, no susto, já se passaram todos os quase 60 poemas do livro.

E continuamos bem à vontade.

Em sua “nota da autora”, Flávia Lamary diz que escreveu um pequeno poema após muitos anos – “o primeiro de inúmeros que dispararam como se temessem que eu voltasse a fechar aquela porta”.

E conta que, se lhe perguntassem, quando era criança, o que seria quando crescesse, ela dizia: “serei poeta”.

Do lado de cá de seu livro, redescobrindo o encanto pela poesia também após muitos anos, só peço a ela que mantenha essa porta escancarada, e continue honrando o desejo da criança que foi.

***

(Quem sabe algum dia eu honre a minha criança, que respondia à mesma pergunta com um “serei escritora!…”)

 

“À Vontade”
Flávia Lamary
ed. Miguilim
96 páginas
R$ 59 na Amazon e R$ 69 na editora Miguilim (preço consultado na data do post; sujeito a alterações)

 

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