De quando não tínhamos só uma tela pela frente

Meu último post foi um suspiro nostálgico sobre um jornalismo que já não se pratica mais, que nem sequer se sustenta. A verdade é que ando com muitas saudades, de muitas coisas. O post de hoje é sobre as outras nostalgias.

Sobre aquele tempo – lembram-se? – em que a gente ia fazer uma viagem e levava um filme de 36 poses e uma câmera. Tínhamos que selecionar com muito cuidado quais fotos deveríamos fazer, porque filme era caro e, afinal, limitado. E ainda podia acontecer de a foto aparecer queimada na revelação. Assim, já fazíamos um processo de edição durante a viagem. Isso vale foto, isso não. E a gente absorvia mais com os olhos, porque não tínhamos uma tela de celular entre as paisagens e o cérebro, o tempo todo. Depois, já de volta, contávamos aos amigos as coisas mais legais do passeio e mostrávamos um álbum com as cenas que tínhamos fotografado. O álbum rodava a mesa toda – as pessoas ainda conversavam ao redor de mesas! – e os amigos viam cada foto em seu ritmo, paravam para perguntar, absorviam as cenas também.

Hoje as pessoas viajam e gastam mais tempo postando fotos no Instagram, numa necessidade frenética de compartilhar tudo o que está acontecendo, do que realmente curtindo e absorvendo o lugar em que estão. Quando voltam e vão contar o que viram, todo mundo já sabe, porque já viu antes nas redes sociais. Quando alguém resolve pegar o celular para ver todas as fotos, vai passando com dedos ágeis, apressados, inclusive porque são tantas fotos de tudo que não raro aparecem dez praticamente idênticas, só mudando as caras e bocas, os biquinhos e piscadelas.

Também tenho saudades daquela época em que a gente ia às bancas de revista do bairro (eram muitas!) e havia mesmo revistas por lá – e não meias, carregadores de celular, pen-drives e um monte de bugigangas que às vezes nem sei o que são. A gente entrava na banca, pegava algumas revistas, folheava. Conversava com o revisteiro (a quem conhecíamos pelo nome). Às vezes líamos a revista inteira lá dentro e depois devolvíamos para o mesmo lugar, sem pagar. A gente se informava nas bancas e não em milhares de alertas diários no smartphone. A gente encontrava os mesmos vizinhos do bairro por ali, e também os conhecíamos de nome. (Inclusive foi na banca da Cleusa que consegui meu primeiro trabalho, de professora particular da filha de uma moradora do bairro. Eu ajudava a garotinha a fazer o dever de casa e ganhava R$ 5 em troca. No fim da semana, R$ 25. No fim do mês, R$ 100. Uau!)

Outra saudade era do dia do aniversário. Nunca gostei muito de telefone, nem de dar nem de receber telefonemas, mas era legal, no dia do aniversário, passar o dia recebendo ligações de amigos que eu não via há tempos, de primos, de tios distantes. Hoje a gente recebe mensagens de zap com gifs de bolos coloridos, no máximo um áudio de alguns segundos.

Mas minha maior saudade mesmo era de uma época, nem tão remota assim, em que as pessoas olhavam para o que estava acontecendo ao redor delas. Boa parte do dia, estavam assistindo, com seus próprios olhos, a rostos de outras pessoas, ou a eventos cotidianos em geral. Olhavam mesmo para o trânsito quando estavam dirigindo, e não para a tela do celular. Hoje a gente gasta mais tempo olhando para uma tela de plástico engordurada e arranhada do que para qualquer outra coisa do mundo.

Mais para a tela arranhada do que para os rostos dos nossos filhos.

Mais para a tela arranhada do que para o sorriso dos nossos companheiros.

Mais para a tela arranhada do que para a árvore diante da janela do quarto.

Mais para a tela arranhada do que para os quadros favoritos pendurados nas paredes de casa.

Mais para a tela arranhada do que para o céu azul e sem nuvens de outono.

Haverá um dia em que tentaremos nos lembrar de tudo o que vivemos e só virá à nossa mente a tela arranhada do smartphone, cheia de fotos e textos mal absorvidos do outro lado, arrastados por dedos apressados e irritadiços, prontos para a próxima tela.

E não nos lembraremos de mais nada, nem haverá nada do que ter saudades.

 

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

4 comentários

  1. E quando tinha que colocar o filme contra o SOL para tentar saber como ficou a foto kkkkkkk
    Outro dia estava comentando com um amigo sobre a questão da valorização da imagem. Era tão dificil fazer um album e cada foto tinha muito valor. A gente guardava e talz. Hoje temos Iphones com milhares de fotos que nunca vamos recordar, se tornou comum e não a materialização estática de uma memória como era antes.
    Sobre o contato com pessoas, acho que entrou na moda odiar pessoas.

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