Terminei de ler “A Contagem dos Sonhos“, primeiro livro de Chimamanda Ngozi Adichie que conheci, bastante pensativa. Não gostei dele o tempo todo, da primeira à última página – e até por isso demorei um pouco mais que o normal a concluir a leitura. Mas gostei de muita coisa e, no geral, talvez tenha sido um dos melhores lançamentos do ano.
Vou começar explicando o aspecto do livro de que menos gostei, já que foi menos importante do que todo o resto.
Embora trate de muitas coisas –, como a amizade, a maternidade, o abuso e a imigração –, o tema principal do livro é o amor, os relacionamentos amorosos. E talvez tenha sido a forma de descrever esses relacionamentos o que menos tenha me agradado. São várias histórias de namorados (ou ex-namorados) se desfiando, uma atrás da outra, em cada uma das lembranças das quatro mulheres protagonistas – que, por sinal, estão coligadas entre si por uma forte amizade.
A certa altura eu já estava meio cansada de ouvir mais uma dessas histórias. Tem mais um cara? Ah, de novo não! Sério que ela caiu nesta cilada mais uma vez? Era um amontoado de homens idiotas (e, claro, o melhor de todos é deixado de escanteio).
O livro é dividido em cinco grandes partes: a primeira é o relato em primeira pessoa da escritora Chiamaka, nigeriana que vive nos Estados Unidos (quando não viajando pelo mundo afora); a segunda é o relato em terceira pessoa de sua amiga Zikora, uma advogada; a terceira é o relato em terceira pessoa da guineense Kadiatou, que trabalhava na casa de Chiamaka; a quarta é o relato em primeira pessoa de Omelogor, prima de Chia que ainda vive na Nigéria; e a quinta e última retoma, em primeira pessoa, a visão de Chia, como que fechando um ciclo.
É interessante como todas as personagens são apresentadas logo na primeira parte, e as partes seguintes vão cobrindo os buracos que tinham sido propositalmente abertos pela autora, como se tudo fosse parte de um grande tecido em permanente e perfeito processo de costura. E todas as vozes e histórias que vão sendo costuradas, em algum momento, passam pelo relacionamento dessas mulheres com algum homem – mas também se enriquecem, à medida que o livro avança, com outros contornos mais complexos.
Explico: a vida de Chia, uma multimilionária, me parecia extremamente simples e bem-resolvida. Ela mora numa mansão em Maryland, trabalha com o que gosta (escrevendo sobre turismo), num estalar de dedos pode ir para qualquer parte do planeta. Tirando pequenas menções a dificuldades para obter um visto por ser nigeriana ou com breves situações de racismo, ou com a pandemia (que, no mais, traumatizou todos nós), a vida de Chia era como um conto de fadas.
Então fiquei com certa raiva ao ver ela se complicar por causa de homens imbecis – com destaque para o desprezível Darnell, um sujeito cruel que só queria fazer mal a ela, mas a quem ela se submeteu de tal forma que levou três anos para perceber que tinha que sair daquele relacionamento tóxico.
Quando passamos à história de Zikora, no entanto, o livro se enriquece muitíssimo ao sair só daquela seara da busca pelo “par perfeito” e se aprofundar na questão da maternidade – de dois lados bem diferentes da maternidade, por sinal.
A história de Omelogor também tem suas facetas interessantes, principalmente por conta de sua personalidade, mas, para mim, a melhor história de todas é, disparado, a de Kadiatou. E é inspirada na história real da camareira guineense Nafissatou Diallo, que denunciou o poderoso diretor do FMI e presidenciável da França Dominique Strauss-Kahn por estuprá-la em um hotel chique de Nova York.
Esse caso tomou conta do noticiário em 2011, mas acabou arquivado pela promotoria, que parecia mais interessada em desacreditar a vítima do que em fazer seu trabalho de buscar justiça. E aí a gente lembra que, se em qualquer caso de estupro é sempre a “palavra” da mulher-vítima contra a do homem-agressor, e se em muitas das vezes as mulheres são humilhadas e os agressores saem impunes com a conversa do “sexo consensual”, imaginem quando a vítima da vez é mulher, negra, africana, imigrante, pobre, camareira e quando o agressor que ela enfrenta é homem, branco, europeu, poderoso, riquíssimo e diretor do FMI?!
A balança era muito desequilibrada, a desigualdade de forças e poderes, nesse caso, era gritante. Pra piorar, a imprensa mundial fez um péssimo trabalho. A camareira foi massacrada, como se tivesse sido abusada múltiplas vezes depois daquela no quarto do hotel.
Chimamanda estava sensível pelo luto com a morte da mãe quando resolveu escrever este livro e criar a personagem Kadiatou para o que ela chamou de “tentativa de recuperação da dignidade” da camareira da vida real. Nafissatou não conseguiu justiça no processo criminal movido contra DSK. Mas talvez tenha conseguido alguma justiça neste belo livro ficcional de Chimamanda.
Como diz a autora:
“As histórias morrem ou se apagam da memória coletiva simplesmente por não serem contadas. Ou uma única versão prospera porque outras versões são silenciadas. Quando elas são recontadas e reimaginadas, isso importa. (…) A literatura mantém a fé e conta a história para lembrar, para servir de testemunha, para ser um registro. As histórias nos ajudam a nos ver e a falar sobre nós mesmos.”
É isso. “A Contagem dos Sonhos” tece essas costuras das histórias cotidianas dessas quatro mulheres africanas, mas o que dá o estofo desse tecido é a triste, injusta e dramática história quase-real de Kadiatou, a “camareira” que abriu a porta para o mundo do Me Too, para o mundo em que mulheres estupradas, assediadas ou agredidas podem ver a perspectiva de denunciarem seus predadores, ainda que eles sejam poderosíssimos.
Só por esse capítulo o livro já merecia a leitura. E pelo fim, muito delicado e inspirado, que Chimamanda encontrou para essa adaptação da história real. Que, obviamente, não vou estragar contando a vocês aqui 😉
E tem ainda um último aspecto que eu gostaria de abordar, que é a questão da nossa ignorância completa e absoluta sobre a África – suas histórias, culturas, costumes, culinárias, idiomas, geografia, TUDO. O chamado “mundo ocidental” foi treinado para ignorar a existência daquele continente absolutamente gigante e multifacetado, berço da humanidade, e ler este livro me fez perceber como é gritante esse desconhecimento.
São inúmeras as palavras, expressões, citações de momentos da História e outros detalhes, ao longo de todo o livro, que eu simplesmente não conhecia. Sobre nações, tribos ou etnias africanas. Mais um mérito de Chimamanda: ela consegue polvilhar todas essas pérolas desconhecidas ao longo de seu texto sem que isso nos incomode ou confunda, porque somos capazes de captar o sentido das coisas. Pelo contrário: nos deixa curiosos, com vontade de aprender mais sobre aquele continente tão próximo, que divide conosco o Oceano Atlântico.
Enfim, é um belo livro, no final das contas. A tal “contagem dos sonhos” é muito mais poderosa e interessante quando os sonhos não se resumem a uma lista de ex-namorados relembrados durante o período de confinamento da pandemia do coronavírus. Há muitos outros sonhos em jogo: inclusive o de que mulheres africanas como Nafissatou e Chimamanda possam fazer suas vozes ressoarem longe, mesmo quando há uma muralha de desigualdades e oportunidades separando as duas – entre si, de outras mulheres e dos homens.
“A Contagem dos Sonhos”
Chimamanda Ngozi Adichie
Companhia das Letras
422 páginas
R$ 67,40 na Amazon (preço consultado na data do post; sujeito a alterações)
P.S. Este livro será discutido hoje no clube do livro do Centro Cultural Unimed-BH Minas, com ingressos já esgotados há semanas. Amanhã eles devem divulgar o próximo livro, do encontro de 6 de agosto. Se você for um dos 20 primeiros a se inscrever, vai ganhar o livro do encontro seguinte 😉 #ficaadica
Leia as resenhas de outros livros já discutidos no clube do livro:
- Dentes, de Domenico Starnone
- Coelho Maldito, de Bora Chung
- A Fábrica, de Hiroko Oyamada
- Caderno Proibido, de Alba de Céspedes
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