O Estado no Estado ameaça o governo Lula

Charge de Carol Cospe Fogo - Lula e o Congresso
Os ratos do Estado clandestino retratados na charge-arte de Carol Cospe Fogo

Texto escrito por José de Souza Castro:

Os discursos e falas do presidente Lula acenam com a possibilidade de que ele realizará grandes coisas pelo Brasil nesse terceiro mandato. Nos dois primeiros fez muito. Mas ele continuará enfrentando uma realidade: dependerá em grande parte da máquina do governo. Ou seja, do funcionário público cuja maioria segue as regras não escritas e que controlam o governo desde sempre, impostas pelo Estado no Estado.

O “Estado no Estado” é o nome do livro escrito por Benício Cabral com base em mais de 30 anos de experiência – como Auditor Fiscal da Receita Federal por 22 anos e, por cerca de 12 anos, como Delegado da Polícia Federal. Ele é bacharel e pós-graduado em Ciências Econômicas e em Direito, tendo sido aluno da Universidade de Brasília, da Unicamp e da Universidade Federal de Minas Gerais. Aposentado, dedicou-se por dois anos a escrever o livro, que exigiu muita pesquisa.

Faltou dizer que ele é mineiro de Bom Despacho e filho do Tio Totonho, o notável contador de histórias descrito por mim em dois artigos neste blog.

Benício deve ter herdado do pai esse dom. Mas, ao contrário do Tio Totonho, cujas histórias eram engraçadas, Benício escreve sobre coisas muito sérias. Sempre, porém, fazendo uso “de linguagem bastante comum”. Como avisa ele na página 14: “Não apenas para não parecer pernóstico, como também porque sempre abominei o jargão acadêmico”.

Confusão entre o público e o privado

O livro de 240 páginas foi publicado pelo próprio autor, com prefácio de Mauro Sérgio Bogea Soares, ex-diretor de programa da Secretaria Especial da Receita Federal. Ele foi demitido “a pedido”, em janeiro de 2022, juntamente com dois secretários do Ministério da Economia do governo Bolsonaro.

Sabe-se que nessa época era forte a captura do Estado brasileiro por interesses privados. Que o diga o deputado Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados, que em nada mudou no governo Lula.

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e o presidente Lula. Foto: Sergio Lima / AFP
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e o presidente Lula. Foto: Sergio Lima / AFP

Bogea Soares escreveu que não seria razoável renegar a importância das instituições do Estado para a consolidação da nação brasileira. Acrescentou:

“Contudo, tampouco seria recomendável subestimar as consequências da grande confusão entre o público e o privado, como parte intrínseca da vida nestas terras, que leva a que se confunda a investidura em cargos públicos com a sua posse, na expressão mais literal que esta palavra possa ter, e que torna a busca por privilégios na vida privada condição para o exercício da função pública em todos os seus níveis”.

Estado clandestino forte

Voltando ao que escreveu Benício. Depois de entrar em janeiro de 1986, por meio de concurso para Auditor-Fiscal da Receita Federal, o então estudante de Economia conheceu a máquina pública por dentro em sua rotina diária e foi percebendo que existe um Estado legal, legítimo e público, porém com pouquíssima eficácia material, e “um Estado real, forte e determinante da administração, porém clandestino, funcionando dentro de um arremedo de Estado legal”… “É a isso que denomino o Estado no Estado”.

Dentro dessa cultura que começou bem antes da Independência do Brasil, na alta administração pública não existe o menor interesse ou vontade de resolver problemas. Para apagar incêndios, existem os chefetes treinados segundo as normas do eficiente Estado clandestino.

Os funcionários públicos estão de fato submetidos a esse Estado clandestino que “se nutre, se impõe e se reproduz em sua própria doutrina”. E todos aprendem a duras penas a grande frase do jargão do serviço público: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”.

Essa frase não seria tão grave se quem manda fosse o Estado legal – representado, por exemplo, pelo presidente Lula – que cumprisse a Constituição e as leis aprovadas pelo Congresso e publicadas no Diário Oficial. Mas, quem de fato manda obedece outras normas “que existem, são bastante claras, seu cumprimento é rigorosamente cobrado pelos superiores e pelas Eminências pardas, porém nenhuma delas é escrita”, diz Benício.

Eminências pardas e seus títeres

Eminências pardas, esclarece o autor, “são aquelas pessoas que têm poder político, geralmente um empresário que ajudou a eleger o Prefeito ou o Governador, ou é alguém pertencente ao diretório de um partido político e que, mesmo não ocupando nenhum cargo público é quem, na verdade, dá as ordens“.

Elas também podem indicar chefias em diversos órgãos da administração pública, “sendo o indicado um mero títere, cumprindo ordens diretas da Eminência parda que o indicou”.

Títere, fantoche, controle, controlado, intimidação, coerção, coação. Foto: Sivani Bandaru / Unsplash
Foto: Sivani Bandaru / Unsplash

O mecanismo criado para impor as normas criadas pelo Estado clandestino, segundo Benicio, é altamente funcional e eficaz, e todos os funcionários as conhecem. Aprendem. Trata-se de um mecanismo de incentivo e admoestação, ou de prêmio e castigo. E as normas não podem ser escritas, “porque elas determinam que se contrarie a lei para atender aos interesses imediatos dos membros da plutocracia ou, no mínimo, determinam que se dê tratamento preferencial e prioritário a esses poderosos cidadãos”.

Nenhum administrador público admite, em sã consciência, a existência dessas normas, observou Benício.

“Nos discursos dessas pessoas, ao contrário, todos são cumpridores das leis, servos da legalidade e primores de honestidade e, o que mais se destacam: foram escolhidos para serem chefes pelo critério do mérito profissional, a chamada meritocracia”.

Augusto Aras e rotina de intimidações

O autor demonstra que o conceito de meritocracia tal como praticado no Brasil é uma farsa. Benício dá muitos exemplos da farsa, tirados de sua experiência pessoal, mas não cita nomes dos que se beneficiam da farsa, “para afastar as acusações de ataques à honra de outrem”. Cautela compreensível, quando se lê o artigo do professor Conrado Hübner Mendes publicado no dia 3 deste mês
na “Folha de S.Paulo”. Direi um pouco mais dele adiante, pois Conrado trata do uso que se faz do sistema de Justiça para inibir a ação dos que desejam denunciar malfeitos no serviço público, como faz o delegado da PF aposentado Benício Cabral.

Esse professor de Direito Constitucional tem publicado semanalmente uma série de artigos intitulada “A esfinge lava-jatista”. Neste capítulo 3 ele analisa a atuação do procurador-geral da República nomeado por Bolsonaro e que tenta ser reconduzido ao cargo pelo presidente Lula. Os seis parágrafos iniciais do artigo de Conrado Hübner Mendes:

“A arte de nada fazer garantiu a Augusto Aras lugar indisputado no panteão da infâmia política brasileira. Sua omissão é marca que deixa para a história. Mas não devemos reduzi-lo a isso. O inventário de seu legado está incompleto.

Jair Bolsonaro e Augusto Aras. Foto: Bruno Batista / VPR.
Augusto Aras foi escolhido procurador-geral da República por Bolsonaro e, desde então, nas palavras de Conrado Hübner Mendes, perseguiu e intimidou pessoas na lógica do Estado clandestino descrita por Benício Cabral. Foto: Bruno Batista / VPR.

O procurador-geral da República de Bolsonaro não foi só omisso. Não foi só espectador e parceiro de governo que tentou fazer a democracia romper e deixou gente morrer. Em estimativa conservadora, 300 mil mortes evitáveis. E nenhum constrangimento jurídico, como descrito no último capítulo.

Nesse contexto, a omissão se torna qualificada e superlativa. Está documentada em reportagens, relatórios acadêmicos e representações criminais contra Aras apresentadas pela sociedade civil, por senadores e até ex-procuradores.

Mas não subestimemos Augusto. A perversidade de seu mandato não se limita à inação diante do morticínio pandêmico, da devastação amazônica, da fome indígena, do vandalismo eleitoral, da tentativa de golpe. Sua colaboração com o projeto envolveu práticas autoritárias de sua própria lavra (e de seus subordinados, por quem se responsabiliza).

Entre as características mal contabilizadas de sua gestão está a rotina intimidatória. No dicionário histórico da covardia, há verbetes a respeito. Intimidação é técnica de gestação e disseminação de medo, autocensura e silêncio.

O intimidado teme por sua vida, sua liberdade, sua profissão, seu sustento. Ou assume risco de enfrentar, ou se encasula. Ou pensa três vezes antes de praticar a ação que o intimidador tenta desencorajar, ou se cala. E não só o intimidado: num clima de intimidação, toda a comunidade tende a se retrair. A mira não se restringe ao desafeto concreto, mas a qualquer desafeto potencial”.

E conclui:

Aras parece lidar com relações de autoridade assim: adula metodicamente quem está em cima (segundo sua cosmovisão constitucional, o presidente, os generais e os ministros do STF); exige adulação de quem está embaixo (qualquer procurador da República, professor, jornalista, cidadão). Se não, ameaça e persegue. É uma técnica muito eficaz de congelar a mais importante instituição de controle da delinquência política. E não acabou aqui.”

Frases de doutrinação do estado clandestino

Apesar disso, afirma Benício Cabral, há os que não se deixam intimidar, no Serviço Público, pelas normas impostas pelo Estado no Estado. Ele cita vários exemplos de funcionários que não têm juízo para obedecer o “manda quem pode” e outras frases típicas da doutrinação ideológica do Estado clandestino, como:

  • “usar de bom senso”,
  • “ter jogo de cintura”,
  • “buscar o verdadeiro objetivo da norma”,
  • “tentar resolver da melhor maneira”,
  • “trata-se de gente de bem”,
  • “aqui não há interesse em causar dano”,
  • “eu me coloco no lugar da pessoa interessada”, e outras semelhantes.

“Ou seja, o escopo é sempre atender o interesse do poderoso, ou seus apaniguados e protegidos, mesmo que o ato contrarie a legislação escrita”, escreve ele.

Como adquirir o livro ‘O Estado no Estado’?

Paro por aqui, recomendando a leitura do livro. Se possível, pelos auxiliares diretos de Lula ou pelo próprio presidente da República.

O delegado aposentado da Polícia Federal Benício Cabral e seu livro 'O Estado no Estado'.
O delegado aposentado da Polícia Federal Benício Cabral e seu livro ‘O Estado no Estado’.

Porque, como diz Benício na conclusão do seu livro, é a partir do momento em que se sabe que existe um monstro – no caso, o Estado no Estado impedindo a verdadeira administração pública – que será possível combatê-lo. Como afirmou Karl Marx, conhecer o problema já é ter a solução.

E não custa muito conhecer. Benício Cabral está disposto a enviar o livro cobrando apenas R$ 20 pela despesa de correio. Interessados podem se comunicar com ele pelo e-mail beniciocabral@hotmail.com.

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Por José de Souza Castro

Jornalista mineiro, desde 1972, com passagem – como repórter, redator, editor, chefe de reportagem ou chefe de redação – pelo Jornal do Brasil (16 anos), Estado de Minas (1), O Globo (2), Rádio Alvorada (8) e Hoje em Dia (1). É autor de vários livros e coautor do Blog da Kikacastro, ao lado da filha.

2 comentários

  1. Gostei muito da abordagem crítica sobre o meu livro. A analogia com o artigo do Professor Hübner é bem conveniente, já que, com olhares diferentes, se mostra a mesma realidade, que eu denomino O ESTADO NO ESTADO. Muito obrigado pelo simpático artigo. Espero que mais gene queira ler o meu livro e debater comigo essa questão da Administração Pública brasileira.

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  2. Que bom que gostou, Benício Cabral. Também gostei de escrever o artigo e, principalmente, de ler o livro.

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