‘A Vida Pela Frente’: um livro sobre a velhice (e o amor) pelos olhos de uma criança

Vou fazer um resumo bem rápido deste pequeno e precioso livro, que não vai comprometer as surpresas da leitura. Trata-se da história de Mohammed, o Momo, um menino que é filho de uma prostituta que ele nunca conheceu e que mora com Madame Rosa, uma judia sobrevivente do Holocausto, que também se prostituiu em Paris e, agora aposentada, cuida de crianças filhas de outras mulheres “que se viram”, como diz o narrador mirim. Somos apresentados a ela já em estado de saúde delicado, com obesidade mórbida e idosa. Eles vivem em um apartamento do sexto andar de um prédio decrépito na periferia da capital francesa, onde só se chega de escadas. Seus vizinhos são outros imigrantes, árabes, judeus, negros: todos eles têm em comum a pobreza e a luta pela sobrevivência.

Pronto, resumo feito. Mas o que torna este livro especial não é esse enredo que já vimos em outras tantas obras, literárias e cinematográficas. E sim a forma como esse enredo é narrado, pela voz e olhar do pequeno Momo.

O livro é todo escrito em primeira pessoa, por um garotinho que, embora seja muito esperto, não raro troca as palavras e usa expressões que ele não sabe bem como colocar (vale lembrar que ele nunca foi formalmente educado), e quase sempre vomita as lembranças aos trancos e barrancos, com aquela ansiedade típica das crianças. Apesar de ainda guardar uma inocência de criança, ele já tem “muita experiência”, como gosta de repetir, e uma maturidade e dureza que não condizem com sua idade. E, mesmo que a narrativa tenha idas e vindas e muitas repetições e atropelos, ela nunca perde a fluidez. A gente não consegue perder o fio da meada, o que prova que esse narrador mirim é um mestre da contação de histórias. O livro todo é numa linguagem bem oral mesmo, como se estivéssemos sentados na calçada, ao lado de Momo, escutando o que ele tem a dizer.

Vou colocar aqui um trechinho escolhido aleatoriamente, para exemplificar:

“Madame Rosa tinha achaques no coração e era eu que fazia o mercado por causa da escada. Os andares eram o que havia de pior para ela. Ela assobiava cada vez mais quando respirava e eu tinha asma através dela, eu também, e o dr. Katz falava que não existe nada mais contagioso do que a psicologia. É um negócio que ainda não conhecemos. Todas as manhãs, ficava feliz de ver que Madame Rosa acordava, pois eu tinha terrores noturnos e sentia um medo atroz de me ver sem ela.” (página 52)

Apesar de ser contado por uma criança, eu não acho que o tema principal deste livro seja a infância, mas sim a velhice. O fim da vida, mais difícil para uns que para outros, e a morte. Até a eutanásia é fortemente abordada na história, e nos faz pensar muito sobre a sabedoria do “deixar morrer”, ainda que doa, ainda que a perda de alguém querido nos torne mais sozinhos neste mundo ácido e caótico.

O livro também é sobre o amor entre uma criança e sua mãe adotiva, um amor que se não se traduz em mimos e carinhos, mas em todo o perfume e maquiagem que Momo vai gastar nas páginas finais. Um amor doído, dependente, possível.

É um livrinho pequeno, com menos de 200 páginas, e, ao mesmo tempo, tão grandioso, tão abrangente nas reflexões que nos traz. Que todos saibamos encarar a vida pela frente com a mesma coragem deste herói-mirim.

A Vida Pela Frente
Émile Ajar (Romain Gary)
Ed. Todavia
190 págs.
R$ 42,89

 


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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

4 comentários

    1. Legal! Como está na Netflix, vou procurar pra ver! Mas já vi, por essa resenha, que tem algumas diferenças em relação ao livro, né. A começar pela localidade, que muda da França pra Itália. Mas vc já é a segunda pessoa a me indicar, então deve ser bom 🙂

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