Obrigada por sua resistência, Valéria Santos! Obrigada por não se calar!

Ethel Tavares de Vasconcelos. Este é o nome da advogada, que exerce a função de juíza leiga num Juizado Especial Cível, que ordenou a detenção da colega advogada Valéria Lúcia dos Santos. Isso depois de já ter cometido outra violação, segundo os mais entendidos no assunto, ao negar que Valéria visse uma peça do processo e simplesmente decidir encerrar a audiência.

Os fatos cometidos por Ethel parecem ter sido tão graves que a OAB já conseguiu que aquela audiência pública fosse tornada sem efeito e remarcada para a semana que vem, quando será presidida por um juiz togado. E mais: “A Ordem representou junto ao Tribunal de Justiça contra a juíza leiga, exigindo seu imediato afastamento das funções, e também encaminhou o caso ao Tribunal de Ética e Disciplina da entidade, para avaliação – como juíza leiga, Ethel Vasconcelos é também advogada. Será feita, ainda, uma representação contra os policiais militares, pela prisão e pelo uso de algemas. Além disso, a entidade tomará medidas civis e criminais para que a advogada seja ressarcida pelos eventuais danos”.

Até o momento em que escrevo este texto, Ethel ainda não havia dado qualquer declaração à imprensa para se posicionar. Haverá argumento possível para o que ela decidiu fazer?

Não na opinião do presidente da Comissão de Prerrogativas da OAB-RJ, Luciano Bandeira, que foi bastante incisivo em seu comentário:

“O que aconteceu nesta segunda-feira em Duque de Caxias é algo que não ocorria nem na ditadura militar. Uma advogada no exercício da profissão presa e algemada dentro de uma sala de audiência. Isso é inconcebível, é uma afronta ao Estado de Direito, à advocacia brasileira e ao direito de defesa. (…) Nada justifica o que ocorreu. Mesmo que a advogada estivesse errada em algo, caberia à magistrada registrar essas eventuais falhas em ata, jamais fazer o que fez. Segundo a Súmula Vinculante 11 do Supremo Tribunal Federal, ela não poderia ter sido algemada. E existe legislação federal que veda a prisão do advogado no exercício da sua profissão, salvo em caso de crime inafiançável, o que não poderia ser o caso.”

Irapuã Santana do Nascimento da Silva, que é professor e doutorando em Direito Processual pela UERJ, vai além: “Será que tudo isso aconteceria se a Dra. Valéria não fosse mulher e negra?”

Claro que ele não foi o único a destacar que o episódio foi um ato explícito de racismo. Em (excelente) entrevista ao Jota, Valéria também fala sobre quando “caiu a ficha” que ela estava sendo vítima de racismo:

A senhora já tinha passado por alguma situação parecida? Isso ocorreu pelo fato de a senhora ser negra?

A minha cor da pele não vai mudar. Já sofri antes e vou continuar sofrendo. Isso é fato. Mas a minha questão no caso é minha prerrogativa como advogada. Eu não deveria ter sido algemada, meu direito foi violado.

O tratamento seria parecido se fosse com uma advogada branca?

O que você acha? Você analisa. O vídeo fala por si. Você colocaria uma mulher branca, loira ou de cabelo castanho, pele mais clara, algemada e sentada no chão? Eu pergunto a você. Temos que parar pra refletir. Você já visualizou essa cena?

Não consigo visualizar isso acontecendo.

Pois é. Mas com a imagem de uma mulher negra nessa situação, as pessoas conseguem visualizar. Uma mulher negra reivindicando seu direito de trabalhar e, mesmo assim, sendo algemada.

Por que a senhora decidiu resistir e permanecer na sala de audiência, mesmo sob ameaças de que iriam chamar a polícia?

Eu tenho direito a ler a peça. Isso está na lei. Não estava pedindo um favor, só queria que a lei fosse cumprida.

E quando a polícia entrou e te arrastou, o que a senhora pensou?

Aí caiu a ficha de que, realmente, eu estava sofrendo racismo. Mas desde o momento em que eu sentei na cadeira pra trabalhar, o racismo estava atuante ali. Mas eu abstraí. Não posso levar em conta, se não eu não trabalho.

Por que a senhora sentiu isso desde o começo?

A juíza leiga perguntou se [eu e a cliente] éramos irmãs, talvez pelo fato de nós duas sermos negras. Minha cliente teve de falar ‘olha, ela é minha advogada’. Eu tentei abstrair porque preciso trabalhar, mas, a partir do momento em que me colocaram no chão e eu fui algemada, a ficha caiu totalmente. Era racismo.

À Folha de S.Paulo, ela disse preferir não atrelar o caso a racismo, e deu seu motivo: “O Estado é racista, entendeu? Mas se eu falo isso é mimimi, é vitimismo, por isso que eu não queria atrelar esse caso a racismo, porque eu não quero ouvir essa resposta. A minha luta ali era garantir o meu direito de trabalhar.”

Não é mimimi não, Valéria. O que parece a muita gente é que foi racismo mesmo.

Veio de Reinaldo Azevedo uma ótima ironia com o pensamento que ainda persiste em boa parte das cabeças dos brasileiros, não só dos representantes do Estado:

“Ah, bem, não dá para ignorar, não é? Valéria é mulher e é negra. E será sempre mais fácil, dada a mentalidade dos grotões, algemar uma pessoa considerada petulante quando mulher e quando negra.

Afinal de contas, essa gente precisa saber o seu lugar, não é mesmo?

No dia em que o politicamente correto impedir que se algeme uma advogada negra, humilhando-a, no chão, para aprender a falar mais baixo diante de uma branca, com sua toga temporária, esse país estará perdido, não é mesmo?

A besta incivilizatória está à solta.”

De todo esse lamentável episódio, que me deixou absolutamente revoltada, vale destacar duas coisas muito boas: o corajoso gesto de resistência de Valéria e a reação imediata de grande parcela da sociedade, que ficou tão revoltada quanto eu.

A Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas, por exemplo, soltou uma “Moção de Repúdio em desfavor da juíza leiga Ethel Tavares de Vasconcelos“.

É importante, sim, dar o nome à juíza leiga, porque foi ela que desencadeou tudo, foi dela que partiu o gesto autoritário que pode ser comparado ao do “guarda da esquina“, citado por Azevedo. E Ethel representa a mentalidade de muitas outras pessoas, em outras esquinas. Recentemente mesmo ouvi de uma pessoa próxima que “uma negrinha” que ela conhece “deu sorte ao passar em um bom concurso, com bom salário”, “conta muitas vantagens”, mas “deveria ser mais humilde”, já que tem origem simples. Nunca vi comentário similar sendo desferido contra alguma “branquinha” concursada…

Os gestos de resistência, especialmente vindos das vítimas de racismo, precisam continuar acontecendo. Que esta bela fala de Valéria sirva de exemplo a outras futuras vítimas de abuso:

“Isso ainda vai acontecer, e acontece, todo dia. Eu fiz esse ato, eu resisti, porque acho que alguém pode criar coragem e fazer a mesma coisa quando também for afrontado. Se está vendo algo que não está certo, tem que questionar. (…) É lutar. Não adianta. É tentar não se abater a cada pedra que jogam. É dolorido? Muito. Mas temos que continuar lutando porque, em algum momento, irão te escutar. Pessoas também ficarão constrangidas e farão algo a respeito. Queriam me calar, mas não conseguiram.”

Parabéns, Valéria! Não se cale, jamais!

Toda vez que vejo esse vídeo dela tenho vontade de aplaudir de pé, de chorar de raiva pelo que fizeram com ela, de abraçá-la por sua firmeza, coragem e determinação.

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

6 comentários

  1. Parabéns, Valéria! Parabéns, Cris. Ambas resistem bravamente a essa arbitrariedade da advogada e juíza leiga Ethel Tavares de Vasconcelos que o Tribunal de Justiça do Rio tentava manter incógnita. Por que será? Costas muitíssimo quentes? Para obter essa cargo no Judiciário, ela passou em concurso público? É mais uma meritocrata, seja lá o que isso signifique? São muitas as questões pendentes de esclarecimento, mas nada que se iguale ao absurdo que nos chega ao conhecimento aqui. E que li alhures, um absurdo que não se restringiu a Ethel mas também a outros advogados presentes à audiência que tentaram fazer com que Valéria desistisse e fosse logo embora com a cliente sem esperar a chegada de um representante da OAB, porque estava, com sua resistência, atrasando o trabalho deles. E se chamam operadores da Justiça!

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    1. Sim, dá pra ver no vídeo ela discutindo com esses advogados também! Nenhum deles se levantou para apoiá-la na tentativa de ter acesso ao trabalho dela, como poderia ter acontecido a qualquer um. Teve de resistir a todos, a Valéria.

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      1. Monica Bergamo, em sua coluna na Folha de S. Paulo, informa nesta terça-feira, 25 de setembro, que a juíza leiga Ethel Tavares de Vasconcelos foi inocentada da prática de qualquer abuso, pela comissão judiciária instalada pelo Tribunal de Justiça do Rio. Um dos membros da comissão, desembargador Joaquim Domingos de Almeida Neto, disse que não vislumbrou prática de qualquer desvio funcional dos servidores envolvidos e de Ethel. Afirmou que a versão que Valéria foi derrubada no chão por uma rasteira antes de ser algemada não foi comprovada pela imagem registrada em vídeo.
        O presidente da Comissão Estadual de Defesa de Prerrogativas da OAB, Luciano Bandeira, afirmou porém, que a conclusão da comissão “não muda nada, é um processo unilateral”. “Nós não sabemos quem são as testemunhas, sequer estávamos presentes quando a juíza leiga e testemunhas apresentaram suas versões”, disse. Para ele, não é possível dizer que a juíza leiga foi inocentada. “Não tem isso de inocentar. Pode ser que administrativamente o tribunal não vá fazer nada, mas por parte da OAB isso continuará sendo apurado”.
        A Ordem vai prosseguir com a investigação interna no seu Tribunal de Ética e Disciplina e já entrou com representação contra os policiais na corregedoria da corporação. A apuração na OAB está na fase inicial, em que a juíza leiga apresenta a sua manifestação. “Se ficar caracterizado que houve uma infração da juíza leiga, vamos entrar com representação no TJ-RJ, no CNJ, além de processos civis e criminais na Justiça”, disse Bandeira.
        Íntegra aqui: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2018/09/comissao-inocenta-juiza-no-caso-de-advogada-negra-algemada.shtml

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  2. Guerreira Valéria!
    Se eu não tivesse visto o vídeo, poderia não crer que coisas destes tipo pudessem acontecer. Racismo puro, por parte da juíza Ethel, dos policiais e dos demais advogados que estavam na sala e que foram coniventes com a tal juíza. Vergonhosa a atitude desses seres medíocres, que se acham superiores.
    Valéria, mesmo que os medíocres afirmem que teu discurso seja mimimi, continue lutando, brigando pelos teus direitos , como pessoa, mulher e por seres negra. Com certeza servirá como exemplo, para outras pessoas que passam por esta situação. Da mesma forma, tu estará ensinando, a esses medíocres, que eles tem o dever de respeitar o seu semelhante, que o título que possuem é meramente uma formalidade, a qual pode ser tirada a qualquer momento.

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