Retrocesso sim, mas a esperança é a última a morrer

Dilma Rousseff participa da Cerimônia de abertura da 4ª Conferência Nacional de Política para as Mulheres, em Brasília. Foto: Valter Campanato/ Agência Brasil
Dilma na abertura da 4ª Conferência Nacional de Política para as Mulheres, em Brasília. Foto: Valter Campanato/ Agência Brasil

Texto escrito por José de Souza Castro:

A presidente Dilma Rousseff fez um discurso de 35 minutos na abertura da 4ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres que começou na última terça-feira em Brasília e termina amanhã, com ela já afastada da presidência da República por 180 dias. Na “Folha de S.Paulo” de ontem encontrei algumas palavras de seu discurso, em dois parágrafos de uma notícia de uma coluna intitulada “Dilma desiste de descer a rampa do Planalto”, com o subtítulo “Gesto simbólico criticado por Lula”, por acenar com o fim da luta.

O jornal deu na capa uma foto da presidente, na Conferência, com esta legenda: “Dilma vai a evento sobre mulheres, talvez o último no cargo”. Na foto, com alguma dose de wishful thinking, vê-se um gesto de adeus. Mas, no discurso, desprezado por esse jornal – e talvez por todos os outros, não tenho como aferir – não é isso que se ouve.

CLIQUE AQUI para ouvir o discurso de Dilma.

O que diz a “Folha”? No quarto parágrafo: “a presidente participou de uma conferência de mulheres onde disse não estar ‘cansada de lutar’, mas ‘cansada dos desleais e dos traidores’.” E no parágrafo seguinte, oitava linha: “Segundo Dilma, seu impeachment decorre do fato de a oposição não aceitar os programas sociais do governo do PT.”

A embaixadora Liliane. Foto: Marcello Casal Jr / Agência Brasil
A embaixadora dos EUA, Liliane Ayalde. Foto: Marcello Casal Jr / Agência Brasil

Isso é que é concisão jornalística. O jornal não se deu ao trabalho de informar que entre milhares de mulheres presentes – vindas a Brasília de todos os Estados brasileiros – estava a embaixadora dos Estados Unidos, Liliane Ayalde, saudada pela presidente, nominalmente, depois de agradecer pelo nome as muitas mulheres que a ajudaram a governar nos últimos cinco anos.

Liliane Ayalde, ao contrário dos repórteres presentes e de seus editores, deve ter ouvido com atenção o discurso de Dilma. Já falei sobre a embaixadora norte-americana num artigo publicado neste blog no dia 5 de fevereiro do ano passado com o título “Dilma pode sentir na pele o golpe paraguaio”.

A seguir, trechos do discurso de Dilma Rousseff. Não economizei espaço, até mesmo porque não sei até quando teremos um espaço livre na Internet, após assumir Michel Temer (e nem tentei corrigir os erros do improviso da presidente):

“É um momento decisivo para a democracia brasileira esse momento que nós estamos vivendo hoje. Sem dúvida, nós estamos num momento em que a gente sente que nós estamos fazendo a história desse país.”

“A história ainda vai dizer quanto da violência contra a mulher, quanto de preconceito contra a mulher tem nesse processo de impeachment golpista. Nós sabemos que um dos componentes desse processo tem sempre uma base no fato de eu ser a primeira presidenta eleita pelo voto popular, a primeira presidenta eleita do Brasil.”

“Então a história vai mostrar, e vai mostrar como o fato de eu ser mulher me tornou mais resiliente, mais lutadora. E muitas vezes, como até hoje, queriam que eu renunciasse. Jamais passou a renúncia pela minha cabeça. A renúncia passa pela cabeça deles, não pela minha. Por que eu digo isso? Porque eu sou uma figura incômoda, porque enquanto eu me manter de pé, de cabeça erguida, honrando as mulheres, ficará claro que cometeram contra mim uma inominável injustiça, enorme injustiça. A renúncia é algo que satisfaz a eles, não a nós. A nós o que satisfaz é a luta, é isso que nos satisfaz, é a luta. Eu asseguro, portanto, a vocês que eu vou lutar com todas as minhas forças, usando todos os meios disponíveis, meios legais, meios de luta, vou participar de todos os atos e as ações que me chamarem. Quero dizer a vocês que, para mim, o último dia previsto do meu mandato é o dia 31 de dezembro de 2018. Eu quero dizer a vocês que eu não estou cansada de lutar, eu estou cansada é dos desleais e dos traidores. E tenho certeza que o Brasil também está cansado dos desleais e dos traidores.  E é esse cansaço dos desleais e dos traidores que impulsiona a mim a lutar cada dia mais.”

“Eles, portanto, quando propõem a minha renúncia, têm dois objetivos. O primeiro: eles querem, de todas as formas, evitar que eu continue falando com vocês e denunciando o golpe. Querem também disseminar uma ideia: “Ah, ela é mulher, ela não tem capacidade de resistir”.”

Foto: Roberto Stuckert Filho/ PR
Foto: Roberto Stuckert Filho/ PR

“Quero dizer a vocês que os golpistas carregam outro tipo de promessa com eles mesmos. Eles carregam promessas que nós não votamos nelas. Elas foram derrotadas nas urnas em 2014. Eles carregam com eles a promessa de retrocesso. Prometem eliminar a obrigatoriedade dos gastos em saúde e educação. Prometem desvincular os benefícios do salário mínimo, principalmente os previdenciários. Prometem privatizar tudo que for possível. Prometem acabar com o pré-sal. E é isso que nos diferencia.”

“Eu quero dizer a vocês que o povo brasileiro votou em mim duas vezes, e agora eu quero dizer que esses 54 milhões de votos que eu recebi das urnas no ano de 2014, eu vou honrá-los. Por isso eu quero dizer a vocês que esse processo de impeachment é um golpe, é golpe contra tudo isso que eu acabo de dizer. É um golpe.”

“Os seis decretos dos quais eles me acusam não são decretos feitos para beneficiar a Presidência da República, a minha pessoa ou quem quer que seja. São decretos de funcionamento do governo, decretos feitos pelos presidentes que me antecederam. Como esses, foram feitos 27 no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. E se naquela época não era crime, não é crime hoje também.”

“É isso que está em curso no Brasil: uma verdadeira eleição indireta. E nós temos de dar nomes aos bois. Esse é um processo conduzido pelo ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, em aliança com o vice-presidente da República. Os dois proporcionaram ao País esta espécie moderna de golpe. Um golpe feito não com as armas, um golpe feito não com baionetas, um golpe feito rasgando a nossa Constituição.”

“E no Brasil essa diferença serviu para condenar alguns à escravidão, serviu para alijar a grande maioria do povo dos benefícios desse enorme, rico e cheio país, desse país imenso, continental.”

“Porém, o que nós fizemos, nos últimos 13 anos, foi mudar esse processo e mudar por um caminho: nós reconhecemos a diversidade, nós achamos que ela nos dá força, que ela nos dá vida. Mas nós sabemos que as oportunidades têm de ser iguais. As oportunidades. Quando as pessoas cantam que o filho do pedreiro vai virar doutor, que o filho da empregada doméstica vai se transformar em um médico, esse é o caminho pelo qual nós lutamos nos últimos 13 anos. É essa nossa proposta: a mudança radical em relação às oportunidades.”

“E quando se mostra que é possível mudar a realidade ninguém, ninguém, vai deixar de garantir que ela continue mudando. O que nós conquistamos, nós temos de ter clareza, foi só o começo. Tem muito para conquistar. Foi só um começo.”

“Eu quero finalizar dizendo o seguinte para vocês: eu me sinto injustiçada, sim. Eu sou vítima de uma injustiça. Mas eu sou um tipo de vítima como nós brasileiros e brasileiras somos, principalmente nós brasileiras, vítimas, porém lutadoras, vítimas que não desistem, vítimas com consciência, vítimas com capacidade de luta.”

RETROCESSO

Como minha filha Cristina, eu também torço para que não haja retrocesso. Sabendo, porém, que vamos nos decepcionar.

Multidão que estava no evento com Dilma. Foto: Valter Campanato/ Agência Brasil
Multidão que estava no evento com Dilma. Foto: Valter Campanato/ Agência Brasil

Pois o afastamento da presidente da República reeleita em outubro de 2014 visa exatamente a isso: o retrocesso de todas as conquistas sociais e trabalhistas conquistadas pelos brasileiros mais pobres nos governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores. Que não foram todos os que o país necessitava, diga-se.

Desde a revolução francesa de 1789, com suas palavras de ordem (Liberdade, Igualdade e Fraternidade), muita coisa mudou no mundo, entre avanços e retrocessos. Esperanças de liberdade, como na Inconfidência Mineira, foram sufocadas pelos poderosos de então. Mas a liberdade, pelo menos em relação à coroa portuguesa, acabou se dando três décadas depois.

Liberdade para os negros, em relação à escravidão, demorou muito mais. Igualdade é um ideal que ainda se persegue e continuará assim por muito tempo ainda – talvez, até o fim dos tempos.

Fraternidade, quase não se ouve mais falar disso. Com boa vontade, diria que é uma preocupação do Papa Francisco que, segundo Stédile, está atento e preocupado com o que se passa no Brasil. Mais, espero, que a própria embaixadora dos Estados Unidos, que não diz publicamente para o que torce, mas dá bem para desconfiar: para o retrocesso.

Com a ajuda do Papa – o representante de Deus na terra, que é brasileiro, como aprendi quando menino no interior de Minas –, talvez o retrocesso seja menor do que o que estou a temer.

Como não temer o Temer? Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil (01/01/2015)
Como não temer o Temer? Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil (01/01/2015)

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Por José de Souza Castro

Jornalista mineiro, desde 1972, com passagem – como repórter, redator, editor, chefe de reportagem ou chefe de redação – pelo Jornal do Brasil (16 anos), Estado de Minas (1), O Globo (2), Rádio Alvorada (8) e Hoje em Dia (1). É autor de vários livros e coautor do Blog da Kikacastro, ao lado da filha.

1 comentário

  1. Eu gostaria de ter falado também dos erros de Dilma Rousseff que levaram ao seu afastamento. Mas achei que o artigo ficaria muito grande. Se tivesse a mesma competência de Jânio de Freitas, teria escrito isso que ele publicou hoje na “Folha de S. Paulo”:

    “Foram muitos os fatores contribuintes para este episódio sórdido da antidemocracia, mas um só momento crucial criado pela própria Dilma Rousseff. Os outros momentos determinantes, dois ou três, foram elaborações típicas da mente de Eduardo Cunha. Ficou lá atrás, e nunca esclarecido por Dilma, o fato que demarcou o fim de muitas coisas, o fim do modo como era vista, o fim de suas possibilidades de ação política, até o fim do governo.

    Ainda hoje não se sabe o que ocorreu entre Dilma e o então ministro da Fazenda, Guido Mantega, um tanto antes ou pouco depois da reeleição. A reportagem decente não percebeu a importância do assunto, e os jornalistas da ficção estavam com abundância de temas. Mas a confrontação de duas pessoas exaltadas a se cobrarem de atos e de culpas teve consequências: a saída de Mantega, sob uma justificativa familiar, mas com o tratamento presidencial de descaso, e a substituição, como todas, sob pressões políticas.

    Dilma contornou as pressões com uma nomeação de surpresa. Mas escolher Joaquim Levy, tão identificado com o neoliberalismo que até colaborara com a campanha de Aécio Neves, equivaleu a comunicar à oposição que a presidente estava em pânico com a situação econômica. Sem corrupção dentro do governo, nada poderia dar mais munição aos opositores do que problemas econômicos, não importando a sua dimensão real. Nem que dispusesse de soluções Joaquim Levy poderia adotá-las, imobilizado pela barragem política que associou Eduardo Cunha e Aécio Neves, o tático e o incentivador.

    Dilma traiu-se, perdeu-se, traiu o eleitorado e perdeu a companhia dos defensores de um Brasil menos desigual, menos entregue a uma claque de riqueza e improdutividade, e um pouco mais decente. Desde então, foi uma presidente à mercê da oposição. Por sorte sua, oposição conduzida por gente medíocre. Mas nem isso lhe valeu. Sua ação política foi pior que a dos opositores.

    Dilma é uma técnica que se supõe também política. Presunção comum entre técnicos, sem igual na área econômica. Suas opções políticas foram ruins como regra. As equipes palacianas de sua escolha criaram uma Presidência lerda, sem criatividade e iniciativa, politicamente míope.

    Se, porém, isso explica o governo aturdido com o cerco oposicionista –o parlamentar e o de imprensa/tv/rádio–, não leva a entender a entrega definitivamente desastrosa da Fazenda a Levy –claro que não por ser o sóbrio Joaquim Levy. Ainda hoje Dilma precisa lutar contra o efeito desmoralizante desse ato. Mas nem sequer esboçou uma explicação, no entanto devida: por que a inversão, por que um ministro neoliberal, por que Levy? Absoluta falta de percepção política, sem dúvida. O provável cálculo de uma sedução do poder econômico que, afinal, se voltou contra a feiticeira. E mais, é provável que mais, silenciado e nem por isso esquecido.

    Dilma Rousseff errou muito. Mas nem a soma dos seus erros pode justificar a fúria incivilizada que Aécio Neves desfechou logo depois de derrotado pelas urnas, para derrubada do governo legítimo. A par dos erros, o governo Dilma levou a avanços significativos contra problemas sociais. Aí já se notam recuos deploráveis. Por efeito do quase ano e meio de degradação econômica desde o início do segundo mandato, com a ação destrutiva da oposição e a inoperância do governo, forçada em grande parte.

    Mas os que tomam o poder não trazem correções. São figurinhas fáceis. Vêm buscar o que deixaram de ter. E dar mais aos que não deixaram de ter mais mesmo nos governos de Lula e Dilma.”

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