As doses amargas de cada dia (e o silêncio que prejudica)

Estou no supermercado, 20h45 de segunda-feira. Meu carrinho tem cerca de 20 itens. Existem três caixas ainda abertos: o caixa-rápido (até 15 itens), o preferencial e um terceiro, que tem um sujeito levando compras para um orfanato, pela quantidade. Dirijo-me ao preferencial, eu e minha barriga de oitavo mês de gestação. Lá está uma moça e seu marido, descarregando cervejas, Coca Zero, mais 100 itens, sem qualquer sinal de gravidez, de deficiência ou de ter mais de 60 anos de idade. Ela me vê, dá uma corada básica, mas finge que não é com ela. O que eu faço?

a) Pergunto a ela, educadamente, se ela viu que o caixa é preferencial e se posso passar em sua frente;

b) Pergunto à funcionária do mercado se ela viu que uma cliente que não é preferencial está usando o caixa preferencial;

c) Choro e vou pra trás do cliente que está comprando os mantimentos do trimestre todo, no caixa ao lado.

Talvez surpreenda a alguns de vocês, os que não me conhecem pessoalmente, mas eu sou uma negação com discussões verbais. Eu até sei escrever (um pouco, né?) e travar discussões por meio de textos, mas, quando preciso verbalizar algo, não sai. É uma deficiência terrível que eu tenho, um dos meus defeitos que mais me incomodam e prejudicam. Dito isso, sim, eu tomei o rumo da opção “c”.

Ao não dizer o que eu gostaria, retrucando no momento em que ouço algo desferido contra mim, eu fico com aquilo entalado na garganta — por horas, às vezes até dias. Fico reimaginando a cena, repetida ad nauseam, mas sempre com um desfecho diferente: em que eu falei o que queria ter falado, em vez de apenas ouvir ou não fazer nada, em silêncio. Se isso não faz um mal danado, de envenenar a alma, não sei o que faz. Por isso, muitas vezes choro, ou até apelo para um recurso que eu usava muito quando era mais nova: sento e escrevo tudo o que queria ter dito, e encaminho ao remetente certo.

Na verdade, o silêncio não é uma má resposta a várias discussões. Admiro imensamente quem sabe usá-lo como resposta, sem depois ficar se culpando por não ter verbalizado os sentimentos. São pessoas mais sábias, que sabem dar de ombros e voltar à leveza pré-discussão.

Mas não é meu caso: eu sou uma pessoa das palavras, mas, como só sei usá-las no papel (ou tela de computador), como não sei me expressar pela oratória, meu silêncio sempre me parece incompleto, insuficiente, insatisfatório.

Isso é um problema comum aos tímidos, embora eu não seja uma pessoa exatamente tímida (às vezes sim, mas não é uma condição marcante da minha personalidade). Os tímidos me entendem. Como fazem para passar por um comentário humilhante ou desdenhoso sobre sua pessoa, sem conseguir responder à altura?

Ontem foi um dia especialmente difícil. Antes dessa cena no mercado, eu já tinha engolido sapos anteriores, vindos de uma pessoa com quem preciso conviver todos os dias e que já me desrespeitou em diversas outras ocasiões. Como na fila do caixa, escutei calada, enquanto meu coração batia com força, doido para responder como queria. Minha razão e minha timidez controlando tudo, como fiscais, e me empurrando para o silêncio e para a apatia — que eu não sentia.

Quantos de vocês já passaram por isso? No mercado, no escritório, em família, numa reunião de condomínio? Como fizeram ou fazem para lidar com isso?

Meu primeiro impulso (agravado pelos malditos hormônios da gravidez) é chorar. Meu segundo é ficar arquitetando planos de fuga para as montanhas, para algum lugar onde eu nunca mais precise conviver com pessoas escrotas — bichos escrotos –, do tipo que só querem fazer mal aos outros. O terceiro é a conformação com o fato de que vivemos em uma sociedade que tem um aspecto cruel, e o esforço para que nunca nos curvemos a ele, mesmo que não tenhamos a última resposta na ponta da língua. O melhor é nos apoiarmos naqueles seres especiais (eles também existem!), que tornam a vida mais leve que dura, e podem renovar nosso otimismo diante dessas doses amargas de cada dia.

aliceecila.tumblr.com
Melhor pensar: “Isso vai importar pra você daqui a um ano?” Tirado de: aliceecila.tumblr.com

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

12 comentários

  1. Ah, Cris, se isso acontecer de novo, vá logo para a frente do caixa preferencial. Não precisa nem dizer nada, mas como você é educada diga “com licença”. Aposto um milhão de reais que as pessoas que estão usando o preferencial não vão falar nada – se falarem alguma coisa, vai ser um pedido de desculpas.
    Eu às vezes rebato, discuto quando estou vítima de injustiça, mas o desgaste com isso é tão grande… fico sem saber o que é pior, se é fingir que nada aconteceu ou reclamar. Sou como você, também fico reimaginando cenas. Mas reimagina tanto nos casos em que me manifesto quanto nos casos em que fico em silêncio. Isso realmente faz muito mal e eu me esforço para não fazê-lo, mas é tão difícil! Como controlar nossos pensamentos? Tentativas nesse sentido costumam surtir o efeito contrário – o típico “não pense num elefante”. Na hora aparece um elefante cheio de detalhes na sua cabeça…
    Mas no seu caso, grávida de oito meses, nem vai ter discussão. Como eu escrevi, duvido que os “espertinhos” do preferencial vão dizer “ei, você está passando na nossa frente!”.

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  2. Não chore, Kika!! É triste saber disso, assim. Você não merece chorar!!
    Não pense dessa forma. Tá errado pensar assim. Você não ia mudar nada falando com a pessoa tudo o que está entalado na sua garganta. As pessoas não entendem.
    Em geral, todo mundo é meio burro. As pessoas não prestam mais atenção à nada: fila de supermercado, fila de banco, vaga preferencial, ponto de ônibus (é a coisa mais comum que eu vejo hoje, muita gente para em frente ao ponto de ônibus e atrapalha todos que precisam de usá-lo). É uma burrice de dar dó.
    Se você fala, todos têm desculpas prontas. Respostas na ponta da língua, afiadas à espera de alguém para machucar. O melhor que você faz é agir corretamente, como você fez. Seguir a sua vida sem se ressentir com a atitude dos outros. Eles é que erram, não você. Agir cuidando mais do seu bem-estar físico e mental é muito inteligente nesses dias tão violentos.
    Se você fica mal por não falar, imagina se alguém te agredisse verbal ou fisicamente! Aquilo ia te deixar chateada por meses, até anos.
    Seria uma escalada de violência, com você passando a agir de forma estúpida com outras pessoas para passar o “sentimento” para frente.
    No final, há uma soma de burrice com violência que faz com que o melhor seja ficar calado. Não pense que você é covarde. Isso não é covardia.
    No mais para extravasar, siga a máxima do poeta: “Pareço legal, mas xingo pessoas mentalmente enquanto sorrio.”

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    1. Bom conselho, Lucas. E sábio. Quero aprender a me manifestar verbalmente quando a situação exige (no post de hoje, dou um exemplo em que acho que é melhor mesmo o silêncio), mas também a relevar, como você nos ensina. Eu até tenho certa facilidade para relevar, mas quando é uma situação que se repete muito, fica mais difícil 😦 abração e obrigada pelo comentário!

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  3. Gravidas deveriam ser mais respeitadas SEMPRE…..Afinal, nem sempre é fácil carregar um peso extra por nove meses, por mais amor que se tenha, sem contar os demais incômodos…
    Penso que no caso vc deveria se encaminhar ao gerente e solicitar o atendimento prioritário a que vc tem direito… sem discussões e sem estresse.
    beijos

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  4. Oi, Kika! Eu sou muito parecida com você nesse sentido. Tenho dificuldade enorme de falar e fico remoendo o ocorrido… mas com o passar dos anos, tenho sofrido menos.
    Gostei do comentário do Lucas e, olhe, você é uma pessoa admirável. Um enorme abraço!

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  5. Olá Kika! Você me descreveu direitinho! Ainda agora, que já tenho netos e depois de várias cirurgias para retirada de cálculos dos rins por viver engolindo sapos, tenho grande dificuldade de botar pra quebrar como os médicos me dizem. Mas viver é uma arte e sempre aprendemos com as crianças, por isso, acho que você está no caminho certo: eu também estou aprendendo com meus netos. Boa sorte pra você e um abraço.

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  6. “Quantos de vocês já passaram por isso? No mercado, no escritório, em família, numa reunião de condomínio? Como fizeram ou fazem para lidar com isso?”

    Cris, sou igualzinho a você. Eu também “travo” na hora de dar uma resposta pronta, imediata… e depois fico me contorcendo imaginando uma, duas, dezenas de respostas que eu poderia ter dado a uma situação ocorrida e que me incomodou. ( o pior é que são boas respostas rsrs)

    Não sei lidar bem com isso ainda, mas tive que aprender a pelo menos ser assertivo em certas situações – sala de aula, por exemplo, embora tenha raríssimos problemas com isso. Mas nesta sociedade cruel em que a EMPATIA é cada vez mais rara, a melhor política pode ser mesmo o silêncio. ( e aí você desconta no sujeito escrevendo um conto onde ele se dá mal. Nunca provoque um escritor – ou desenhista ou músico! rsrs)

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