Jornalistas, esses carniceiros

“Carniceiros! Urubus!”

Atire a primeira pedra o jornalista que nunca foi chamado assim.

Claro que existem os casos extremos, como o retratado em “O Abutre“, que já discuti aqui no blog. Mas, de um modo geral, quem solta esses gritos contra o jornalista não entende o cerne dessa minha profissão: informar, escancarar a realidade, tirar maquiagens que costumam ser colocadas por N pessoas que não querem que o que está por baixo delas seja tornado público: governos, empresas, igrejas, grupos econômicos etc.

Sim, é terrível você ter acabado de perder um parente em um acidente de trânsito grave e se ver alvo de cliques ou perguntas de um repórter, mas é fundamental que esse acidente seja registrado, computado, divulgado. O mesmo quando ocorre um crime. Se acidentes e assassinatos e tragédias não fossem cotidianamente cobertos pela imprensa, qual interesse teria o governo em registrá-los em suas estatísticas oficiais? O interesse, aliás, já é nulo — nota-se pela quantidade de subnotificações que existem, de dados que as secretarias de segurança pública distorcem ou omitem, da caixa-preta que é uma instituição como a PM mineira –, imaginem como seria se as páginas de jornais ignorassem solenemente a existência dos crimes, das tragédias, dos desastres humanitários, dos acidentes, dos casos de corrupção?

Viveríamos em um mundo do faz-de-conta (como é o que costuma ser retratado pelos jornais em Estados ditatoriais).

Parte do nosso trabalho é mesmo ser “carniceiros”. No sentido de não virar a cara quando vemos um corpo, porque é muito comum que um corpo signifique notícia relevante para a sociedade, informação de interesse público. Não só não viramos a cara: precisamos saber o que levou aquele corpo a estar ali. Ele pode significar a mistura perigosa de álcool e volante, que é crime de trânsito há séculos, mas só muito recentemente passou a ser fiscalizado pelo Estado. Pode significar a combinação de tráfico com polícia corrupta. Pode significar, também, o retrato tenebroso de uma parte da História que está correndo bem diante dos nossos narizes, no nosso tempo, e que ainda está longe de ter sido entendida e solucionada:

  1. um Estado Islâmico brutal, que, dentre outras barbaridades, até já instituiu o estupro como parte de sua doutrina religiosa,
  2. famílias desesperadas por essa sombra do Estado Islâmico, fugindo de países onde ele está só crescendo, desenfreadamente, como a Síria,
  3. a precariedade das rotas de fuga dos migrantes, que tentam um alívio em países da Europa, cruzando o Mediterrâneo em botes abarrotados de gente,
  4. as mortes desses migrantes, aos milhares.

Em quatro itens, fiz um breve resumo que está nas páginas dos jornais e sites e telas e ondas de rádio do mundo inteiro, todos os dias. Mas a foto abaixo fala mais que qualquer palavra, escrita ou contada:

Foto: AFP
Foto: AFP

É um tapa na cara do mundo.

É chocante? É. Tira a fome da gente? Tira. Somos todos pais, mães, tios, irmãos, primos de alguma criança fofa, que muito amamos. Todos nós ficamos com o estômago embrulhado por ver a morte tão precoce de uma criança de 2 anos, que possivelmente ainda nem entendia a brutalidade do mundo em que vivia, seja na Síria, seja nos momentos de terror no Mediterrâneo. Mas não cabe ao jornalismo açucarar o mundo: a realidade é essa, brutal mesmo, esse soco indigesto. “Durma-se com uma imagem dessas, com um barulho desses!” Não estamos aqui para colocar ninguém pra dormir, estamos aqui justamente para acordar o mundo para suas atrocidades, na esperança vã de que elas um dia sejam corrigidas.

Quando os erros são escondidos, eles jamais são solucionados. Que os leitores que acham que tudo se resume a sensacionalismo barato, a cliques (que cliques? Esses socos no estômago mais afugentam que atraem, sabiam?), entendam de uma vez por todas: a função primordial do jornalista, desse carniceiro abutre, é justamente de revelar. E, quanto mais dolorosa a revelação, mais relevante ela tende a ser.

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

8 comentários

  1. Um leitor do blog comentou no Twitter: “pergunta: se o menino fosse negro, fugindo do boko haram, a comoção seria a mesma?”

    Respondi a ele por lá e achei legal trazer a discussão para cá também, como um adendo:
    “Uma das imagens mais históricas, famosas, impactantes da história da fotografia é de uma criança negra: http://goo.gl/6Dw9Sl. Outra é de uma criança asiática: http://goo.gl/uKA4vq. O caso do garotinho sírio é emblemático por ser nossa tragédia mais atual, e que não estava recebendo a atenção devida até agora.”

    Completo: a gente mal consegue ver o rosto do garotinho, não é sua fisionomia que importa nessa foto. É o que ele representa: um corpo de uma criança pequena, chegando do mar como se fosse um lixo carregado pela maré, numa das tragédias mais graves que estamos vivendo nos dias de hoje. Acho que nem tudo diz respeito a cor de pele e outras discussões. Estamos falando de humanidade. O Boko Haram é uma tragédia subnoticiada pelos jornais brasileiros? É, sim. A África inteira é. E por um zilhão de razões, que incluem a cobertura mais escassa das agências de notícias, o perigo envolvido, a falta de profissionais do ocidente cobrindo a África, etc. Deixo essa questão para os pesquisadores da Comunicação se debruçarem, porque não é o tema do post de hoje 🙂

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  2. Uma pena que nenhum(a) jornalista averigue e apure quantas criancinhas brasileiras morrem diariamente devido à corrupção no Brejoil ! Sem lembrar que o “negócio ” do transporte dos fugitivos rende uma grana , mas ninguém tem coragem ! É como o Chico , que fala da indústria das armas sem se lembrar que o Vaticano investe na área ! Cinismo e sensacionalismo são as margens do noticiário internacional. A Argentina ,aí ao lado já está há nove dias em polvorosa, mas nem uma linha ….Caluda bicho que a ANTA pega, ou deixa de pagar !

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  3. Cris, é um tema interessante e que rende boa discussão. Uma ótima leitura é “Diante da dor dos outros”, de Susan Sontag, que fala justamente sobre como as fotografias em tempos de guerra e a disseminação rápidas dessas imagens mais “cruas” podem (ou não) chocar as pessoas.

    Curiosamente entrei em uma discussão parecida durante esta semana. Um vigilante de escola na cidade de Camaçari-BA foi assassinado por um aluno de 20 anos de idade dentro da unidade escolar. ( o vigilante denunciou o tráfico de drogas que ocorria no colégio) Pois bem: as imagens do vigilante assassinado, um senhor de 57 anos, foram espalhadas por aí, inclusive na internet e via WhatsApp. No grupo de uma escola onde leciono alguns professores manifestaram o desgosto em receber e divulgar tais imagens, enquanto outros afirmaram que o objetivo era chocar, mostrar “a realidade” para que todos soubessem o que está acontecendo. Aí eu entrei na história, argumentando que as imagens circularam, todos ficaram chocados e no dia seguinte o que acontece? Volta às aulas na escola onde o pobre homem foi assassinado como se nada tivesse acontecido. Eu sei que um homem foi assassinado por um aluno dentro da escola – não preciso da imagem de um homem envolto em uma poça de sangue para ficar chocado, consternado, indignado com esse fato. O problema, talvez, é que tenhamos nos acostumado com certas imagens a ponto de tratar com certa indiferença os seus desdobramentos no cotidiano – a falta de empatia, por exemplo.

    Eu sei que este caso é bastante diferente de um jornalista que capta um momento trágico como desta criança síria ( quantas crianças não morreram assim e quantas não estão morrendo neste momento assoladas por fome, pela guerra, pela travessia?) e da criança africana e concordo com você que o papel do jornalista é mesmo esfregar na cara do mundo o que está acontecendo de trágico e de bom no mundo; mas eu fiz este comentário como um desabafo também – olha aí o papel do jornalista que nos leva à reflexão e não deixa a nossa indignação perecer.

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    1. Mas eu também concordo contigo que não faz sentido mostrar fotos de corpos ensanguentados para poder fazer um registro sobre a situação. Esse limiar é interessante e é bem explorado naquele filme “O Abutre”. A foto da criança é impactante, mas mantém um respeito, mantém o contexto dela no mar, uma distância, mal mostra a fisionomia dela, por exemplo. É diferente de uma foto de um cadáver com buracos de bala e outras coisas que só muito poucos veículos jornalísticos, nada sérios, se aventuram a divulgar. Acho que essa reflexão do que precisa ser divulgado é diária e obrigatória para os jornalistas. Falei um pouquinho mais disso naquele outro post. abração, Groo!

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  4. Acho que o jornalismo faz um paralelo com a educação. Lembro de uma professora falando que você pode trabalhar ate o palavrão na sala de aula, mas aplicado num contexto e sendo objeto de reflexão. A foto mostrando uma tragédia humana em conjunto com um contexto faz com que a reportagem “cumpra seu papel” de informar e escancarar uma verdade. Como leitor não encaro isso como alvo para carniceiros. Me incomoda o fato da exploração dessas notícias que vemos principalmente na TV e em determinados jornais. Essa exploração faz com que apenas a foto choque e não o fato.
    Ainda pior é o falso moralismo brasileiro que é capaz de ver fotos como a do porteiro morto e depois acha absurdo uma reportagem como essa do menino turco.

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  5. variações sobre o mesmo tema: http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2015/09/03/quando-a-imagem-da-morte-e-necessaria-para-nos-lembrar-dos-vivos/
    Trecho inicial:
    “Li reclamações de leitores de jornais e sites indignados com a veiculação de uma imagem do corpo morto de um pequeno menino sírio, afogado e estirado em uma praia da Turquia após uma tentativa fracassada de sua família de atravessar o mar para fugir da guerra.

    Publicadas com cuidado que o tema merece, por mais que doam aos olhos e mexam com o estômago e atrapalhem o jantar ou o café da manhã, imagens têm o poder de trazer a realidade para perto.

    É fácil ficar indiferente diante de números de violência, mas com rostos a situação muda de figura. Dizer que milhares de pessoas morrem afogadas na tentativa de fugir do conflito na Síria ou de fome na África é uma coisa. Mas mostrar a morte de uma criança, usando as mesmas roupas e, quiçá, o mesmo corte de cabelo que o filho de qualquer um de nós é outra.”

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