A simplicidade da morte, por Rubem Alves

ostra

Li “Ostra Feliz não faz pérola” já faz um bom tempo. Em 2010, pra ser mais exata. Mas isso foi quando o li de cabo a rabo; depois disso, já retornei ao livro para consultas várias vezes.

Eu nunca gostei de livro de autoajuda. Não sou religiosa, não leio a Bíblia. Tampouco sou adepta de cartas de tarô ou da sabedoria chinesa do Tao-Te-Ching e afins. Por isso, quando me pegava naqueles momentos de reflexão profunda sobre as coisas, sobre a morte, a vida, o significado do mundo, não tinha para onde recorrer, como quase todo mundo tem. Até 2010, quando conheci este livro do Rubem Alves. E mergulhar nas palavras simples e bem-humoradas dele, claras e inteligentes — sábias — era o mesmo que mergulhar uma cabeça quente de dúvidas num poço gelado de cachoeira. Revigorante.

Não, não se trata de um livro de autoajuda. Mas é um livro de pequenos pensamentos, em forma de contos ou não (às vezes é um comentário casual sobre um filme, por exemplo), dividido em 11 partes. E essas partes tratam de assuntos-chave como amor, política, religião, velhice e morte. Por isso, ele passou a ser um daqueles livros-refúgio, como poucos livros funcionam para mim, que sou muito mais adepta da literatura de ficção do que da filosofia, história, biografia ou mesmo dos livros-reportagem.

Agora que o Rubem Alves morreu, me voltei ao último capítulo desse livro, que trata da Morte. Uma frase, pequetita, se destaca no capítulo: “Na Declaração Universal dos Direitos Humanos falta um direito: “Todos os seres humanos têm o direito de morrer sem dor”.”

Será que o mineiro Rubem morreu seu dor? Espero que sim.

Em outro trecho, ele conta como gostaria de ser velado. E eu espero que seus queridos que ficaram vivos tenham se lembrado desta delicadeza toda:

“Vou ser cremado por não gostar de lugares fechados. As cinzas podem ser soltas ao vento ou colocadas como adubo na raiz de uma árvore. Assim posso virar nuvem ou flor. Um jantar para os amigos com sopa, vinho e Jack Daniels. Será que no outro mundo há Jack Daniels? Ofício religioso, Deus me livre. Não quero que se digam palavras dizendo que fui para o céu. O céu me dá calafrios. Mas gostaria que meus amigos ouvissem algumas das músicas que amo. São muitas. Separei algumas. Gluck: Melodia, da ópera Orfeu e Eurídice, Nelson Freire ao piano. Está no seu DVD. De Bach: o Minueto, do Livro de Ana Madalena. É a coisa mais singela… O CD Bach, do grupo O Corpo, com o Uakti. A primeira suíte para violoncelo, sobre a qual escrevi o livro O Barbazul. O CD Lambarena, em homenagem a Albert Schweitzer, com ritmos africanos. Bach ficaria assombrado! A ária para a quarta corda. Carl Orff, a canção “In trutina”, da Carmina Burana. De Mozart, a Sonata em lá maior KV. 331 (Marcha turca); Uma pequena serenata (Eine kleine Nacht Music). Eu fazia meu filho Sérgio dormir ouvindo essa delicadeza… De Liszt: a Consolação no 3, de uma pungência infinita. De Dvorjak, Sinfonia do Novo Mundo, segundo movimento. De Ravel, o segundo movimento do Concerto para piano e orquestra em sol maior. E de Astor Piazzola, Oblivion, Arthur Moreira Lima ao piano.”

Você, caro leitor, já parou pra pensar como gostaria de ser velado? Isso não é algo necessariamente mórbido, quando tratado com a simplicidade do inexorável, como Rubem Alves tratou. Eu já pensei várias vezes. Para mim, é indiferente ser cremada ou enterrada. Já estarei morta, então, tanto faz. Quero que doem meus órgãos. E, sobretudo, não quero velório. Odeio velórios! Acho os velórios tristes e cruéis, uma espécie de ritual masoquista dos vivos. Mas, se fizerem muita questão — os vivos, digo –, também espero que coloquem para tocar algumas músicas bonitas e que sirvam cerveja gelada no lugar do Jack Daniels.

Estou parecendo muito lúgubre? É só minha tentativa de ver a vida com a clareza do conterrâneo de Minas, com a simplicidade dos sábios. Não deu certo, eu sei. Me interrompi antes de listar as músicas, com medo que pensassem que estou pensando em mortes como quem vai à feira, e não estou. Mas tentei 😉

Agora volto a recomendar fortemente que compre o “Ostra Feliz Não Faz Pérola” e o tenha como um livro de cabeceira, um livro-refúgio. Se quiser ler primeiro antes de comprar, CLIQUE AQUI, que achei um PDF para degustação. Depois me conte o que achou do livro, tá?

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Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

14 comentários

  1. Ah, sempre que ouço uma música de que gosto muito muito muito, penso: esta deviam tocar no meu velório… mas a lista é imensa e negociável, como esta pessoa aqui, que ora quer desvairadamente viver, ora flerta entediadamente com a morte…

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    1. Pena que no Brasil os velórios sejam tão sofridos, né? É todo mundo chorando, uns poucos rindo ao fundo, menos próximos do morto da vez, tudo sofrido, dolorido, doído. Por isso acho um ritual masoquista. Vejo nos filmes os velórios em outros países e é aquela celebração toda, aquela comilança, música tocando, pessoas brindando pela pessoa que se foi. Acho que eu gostaria muito mais de um velório nesse estilo, tocando um “In My Life”, dos Beatles (a mesma música que tocou na minha formatura, quando fui buscar o canudo, e que tocaria no meu casamento, se eu fosse casar na igreja), com as pessoas contando histórias que viveram ao meu lado… Como sei que isso é impossível no Brasil, prefiro nem ser velada.

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      1. No meu, provavelmente rolaria uma dos Beatles, se a vontade do morto contasse. Mas a nossa vontade já fica em segundo plano em vida, imagina depois. A propósito, concordo com o Rubem: o céu me dá calafrios…

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      2. …sem Cássia Eller, sem Hendrix, sem… enfim (preguiça de lembrar nomes) esse povo todo que (a julgar pelos pré julgamentos) não estarão lá… aliás, se os que acham que vão pro céu forem mesmo, eu desejo ardentemente outro lugar…

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      3. ah, só mais uma coisa, por que “se eu fosse casar na igreja”? e por que não iria? tá valendo, enquanto é expectativa… (hoje não tenho de cozinhar, então fico aqui esticando conversa… rs)

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      4. É porque não vou hehe
        Eu falei isso porque só nessas festas ou cerimônias que rola de colocar música. Mas o meu é só no cartório mesmo, e no cartório não faz muito sentido tocar a vitrola 😀

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