Carta a duas jovens com Charcot-Marie-Tooth

Breve explicação: na quinta-feira da semana passada, dia 10 de abril, recebi um email de uma leitora de Pernambuco, pedindo que eu escrevesse uma carta a suas sobrinhas, que nasceram com Charcot-Marie-Tooth e não aceitavam bem a condição. No mesmo dia, recebi a notícia de que uma pessoa muito importante na minha vida foi diagnosticada com a síndrome de Guillain-Barré. Eu nunca tinha ouvido falar de nenhuma das duas doenças, e tive que pesquisar bastante para entender os dois casos. No sábado, escrevi a carta abaixo e enviei à leitora. Pela resposta que ela me deu, percebi que o texto poderia ajudar outros leitores que também tivessem ou conhecessem alguém que tem uma das duas síndromes. Por isso, tendo o cuidado apenas de não citar nenhum nome, decidi reproduzir o texto aqui no blog:

charcot

Queridas meninas,

Vejam que engraçado: até três dias atrás, eu vivia na minha imensa ignorância em relação ao corpo humano. Achava que existiam algumas doenças por aí: gripe, dengue, febre amarela, câncer, cólera etc. Sabe aquelas que a gente aprende na escola ou ouve falar? Seus nomes eram sempre em português, fáceis de falar e pronunciar, e eu achava difícil ter contato mesmo com qualquer uma dessas doenças. Me achava com “saúde de ferro”.

De vez em quando via algum programa de TV que mostrava doenças raras, mas seus nomes eram sempre complicados – os nomes dos cientistas que as descobriram – e elas pareciam ser sempre doenças inatingíveis, distantes, de outro lugar.

Na última quinta-feira, dia 10 de abril, isso mudou. Fui visitar uma pessoa muito importante na minha vida e ela descreveu sensações (sintomas) muito diferentes para mim: suas mãos e pés estavam formigando e sem sensibilidade, ela estava sem o controle dos músculos e caía com facilidade, tinha que andar se escorando nos móveis para se firmar. Levamos ela ao médico, para saber o que a afligia. E, depois de uma bateria de exames, descobrimos um nome completamente novo: Síndrome de Guillain-Barré.

Passaram-se poucos dias e não consegui descobrir ainda muito sobre essa doença. Consegui descobrir que ela atinge no máximo 3 pessoas a cada 100 mil, que ataca os nervos periféricos do corpo e que pode regredir totalmente.

Coincidência ou obra do destino, no mesmo dia, recebi um e-mail da tia de vocês. E ela me falou de outra doença de que eu nunca tinha ouvido falar: Charcot-Marie-Tooth. Fui pesquisar e descobri que ela tem muitas semelhanças com a outra doença: atinge os nervos periféricos e ataca uma parte do corpo que eu nem sabia que existia: a bainha de mielina dos neurônios (meu deus! Como nosso corpo é complexo, né! Se um neurônio já é microscópico, invisível a olho nu, imagine o tamanho dessa tal de bainha de mielina, que é um pedaço do neurônio!).

A diferença gritante que percebi, ao pesquisar sobre a Charcot-Marie-Tooth, é que ela é muito mais comum, inclusive por ser hereditária: pelo que li, a cada 2.500 habitantes, um tem a doença. Ou seja, se o planeta tem 7 bilhões de habitantes, 2 milhões e 800 mil pessoas têm Charcot-Marie-Tooth hoje! É gente pra burro!

Só no Brasil, são quase 80 mil pessoas com CMT (posso chamar assim, né? É mais fácil de escrever e falar, rs!). E cadê todo mundo? Como pude passar quase 30 anos de vida sem nunca ter ouvido falar dessa tal de CMT?

Pesquisei e pesquisei mais e descobri que a “culpa” é de vocês. Explico: as pessoas que têm CMT preferem se esconder, em vez de saírem pelo mundo falando: “Vejam bem, minha gente! Eu sou normal! Eu sou parte de um grupo de quase 3 milhões de pessoas no mundo!”. T-r-ê-s m-i-l-h-õ-e-s! Como podem três milhões se manterem invisíveis?

Se tem uma coisa que aprendi nesse caminho de vida foi que ninguém é “normal”. Não existe essa situação de normalidade, de perfeição. Todo mundo tem alguma condição. E essa condição nem é permanente. Vejam o caso daquela jovem que esperava pelo metrô para ir ao trabalho: de um minuto para o outro, sua vida mudou, depois que um desconhecido resolveu empurrá-la sobre os trilhos. Ela perdeu um braço e teve que se adaptar a essa condição completamente nova. Da mesma forma, os senhores Guillain e Barré invadiram minha vida sem mais nem menos.

Ninguém é 100% feio ou bonito, 100% inteligente ou 100% burro, nada é 100%. Sabem aqueles caras geniais, que têm o QI lá na estratosfera? Albert Einstein e tal? Pois bem, eles eram uns burros em outras áreas da vida. O gênio da matemática e da física muitas vezes é um deficiente social, incapaz de fazer amigos ou manter um relacionamento. Todos temos nossas deficiências e nossas grandes virtudes.

Pesquisando mais sobre a CMT, para entender o que sua tia me disse, descobri que é uma doença (será que podemos chamar de doença? Vou passar a dizer “condição”, porque acho mais real) que passa de pai pra filho e as chances de um bebê nascer com CMT são de 50%. Ou seja, se vocês tiverem dois filhos, é possível, estatisticamente, que um tenha CMT e o outro não tenha. Mas também é possível que o que tem CMT seja feliz, lindo e fera nos estudos e o que não tem seja mal-humorado, meio dentuço e burrinho em matemática. Entendem? Cada um nasce com uma sorte e uma personalidade específicas e podemos sempre tonar nossas condições nesta vida (que, até onde a gente sabe, é uma só!) as melhores possíveis, privilegiando aquilo que temos de melhor e passando por cima das nossas limitações.

Reprodução / "Bernadette"
Reprodução / “Bernadette”

Ainda na minha incansável pesquisa, descobri uma garota linda chamada Bernadette. Ela nasceu nos Estados Unidos e com a mesma condição do pai, com CMT. E sabe o que ela diz? Que seu pai lhe deu um presente, ao passar para ela a tal Charcot-Marie-Tooth. Um presente! Por quê? Porque ela transformou essa condição em uma missão para sua vida. Ela decidiu sair pelo mundo gritando: “Ei, eu tenho CMT! E daí?”, fez um filme, fez reuniões com outras pessoas com CMT, e mostrou que é perfeitamente possível viver uma vida normal e feliz, mesmo em uma condição especial, diferente da de outras pessoas ao redor (mas comum a três milhões de pessoas pelo mundo!).

Vejam como ela é linda: bernadettecmtmovie.com

Nesse site acima, tem os trailers do filme que ela fez. São em inglês, sem legenda. Mas tenho certeza que, mesmo se vocês não falarem inglês, vão conseguir entender a mensagem que é passada ali.

Que tal serem como Bernadette? Não precisam fazer um filme aqui no Brasil (mas quem sabe um dia, hein? Vocês ainda são novas, com toda uma vida pela frente!), mas podem se aceitar e gritar ao mundo, desde aí em Pernambuco, que vocês são tão lindas e perfeitas como a Bernadette, independente de terem nascido com essa tal de CMT.

E se alguém perguntar: “Mas o que você tem? Por que precisa andar com apoio?”, vocês respondem: “Eu nasci com uma condição especial que se chama Charcot-Marie-Tooth, e que outras 3 milhões de pessoas no mundo têm. É a doença neurológica mais comum do planeta. Você nunca ouviu falar???” E bola pra frente, mostrando ao mundo que vocês possuem um conhecimento de uma certa condição de vida que ninguém mais tem, que vocês são mais fortes por isso, que já nasceram conhecendo o significado da palavra “limitação”, que é algo que todo mundo vai conhecer em algum (ou vários) momentos da vida, mas que vocês já enfrentaram de cara, de forma corajosa, e têm a sabedoria de se aceitarem como são, com todas as perfeições e imperfeições típicas dos seres humanos.

E digo mais: se seus filhos também receberem esse “presente” de vocês, como bem definiu a Bernadette, vocês vão mostrar a eles que não têm nada do que se envergonhar e não têm que ficar se escondendo dentro de casa pro resto da vida, porque eles são tão normais como qualquer outro e precisam ser felizes, que é o mais importante 😉

Vocês podem me responder: “Quem é você que fica falando como se tudo fosse assim tão fácil? Você não tem CMT para saber das nossas dificuldades!” É verdade. Sou só uma pessoa que acredita que todo mundo pode ser feliz, seja como for, aproveitando as melhores qualidades que nós temos. E dizem que uma boa qualidade que eu tenho é saber escrever, então também sou uma pessoa que sai escrevendo por aí, rs. Mas, se não acreditam em mim, deveriam acreditar em outras pessoas, outras dessas três milhões de pessoas, que também nasceram com CMT.

Reprodução / Youtube
Reprodução / Youtube

Por exemplo, a Caren, brasileira, linda, que se casou, virou mãe e é feliz. Vejam o vídeo que ela fez. Tem até uma associação brasileira para as pessoas com CMT, sabiam? Vejam o site deles. No Facebook, várias outras pessoas contam suas experiências (descobri o vídeo da Caren lá), vejam que legal.

E tem ainda a bela Bernadette, que não me deixa mentir. Vejam as fotos dela e descubram UMA em que ela esteja com a cara triste. Garanto que não vão achar 😉 Vi lá que ela até aprendeu a dirigir dia desses…

Então é isso, meninas! Bola pra frente, que atrás vem gente! Nada de lamentar a vida, a vida foi feita pra ser vivida, curtida, apreciada em cada minutinho, compartilhada com aqueles que amamos, descoberta! Vocês são novas e precisam descobrir sua missão no mundo. A CMT não será um empecilho nessa trajetória, mas uma parceira. Espero que essa parceria renda frutos, como toda boa parceria!

De cá, em Minas, numa tarde quente de sábado, me preparando para ir visitar minha querida no hospital e passar algumas horas ao lado dela (e descobrir com ela como é essa nova condição por estamos todos passando), desejo a vocês um bom fim de semana e dedico um abraço afetuoso às duas.

Sejam muito felizes! 😀
Beijos da Cris

Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

39 comentários

  1. O síndrome de Guillain-Barré atinge no máximo 3 pessoas a cada 100 mil, ataca os nervos periféricos do corpo e pode regredir totalmente.
    (um vídeo simples mas maravilhoso)https://www.youtube.com/watch?v=07PGzGHSmK4

    No caso da CMT, doença incurável, os pais jamais têm o direito de passar esta doença para outras gerações!

    Excelente artigo!

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      1. Cometi um lapso na escrita: aonde tem “pais” deveria ser “portadores”.

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  2. Sensacional, simples assim Kika! Que bom ter a certeza que ainda há pessoas disposta a fazer o bem – de graça, apenas pelo bem. Já te disse que sou seu fã, e cada dia me torno mais. Obrigado, fico muito feliz por ter alguém a quem admirar.
    Sabe, a medida que lia este texto, me via a mente a imagem daquela menina sapeca que conheci há alguns assistindo “O menino maluquinho”, acho que isto aconteceu porque estamos mais acostumados a ver manifestações de amor e carinho gratuitos apenas em crianças e animais. Aquela menininha ficaria muito orgulhosa da mulher que vc se tornou!
    Por fim, fico muito feliz por ter razão em meus sentimentos, digo isso porque te acho uma pessoa muito especial, e se a Tia das meninas te escreveu, confiando a história de suas sobrinhas, é porque sente o mesmo,
    Um grande abraço e mais uma vez obrigado pelo presente de Páscoa.
    Wesley Pereira

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  3. Eu fui diagnosticada aos 14 anos c
    Síndrome de guilan barrê! Hoje tenho 38, não fiquei com nenhuma sequela! Achei muito interessante a mensagem que postaram!
    Minha doença foi muito difícil mas foi importante ter vivido cada passo pois depois de tudo eu valorizei ainda mais simples atos do dia a dia, como abrir a
    Porta, pegar lápis de escrever e até mesmo os mais simples movimentos do nosso dia a dia! Tenho uma família maravilhosa e 2 filhos que amo muito! Não poderia deixar de registrar o amor incondicional dos meus pais e irmãs que dividiram os momentos tristes mas também os de alegria com o passar dos dias e a minha cura total! Parabéns pela iniciativa de divulgar!!!

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    1. Obrigada, Danielle! Incrível como precisamos passar por algo trágico para darmos valor às pequenas coisas, né. Essas que vc citou são tão importantes: abrir e fechar a porta, segurar um lápis, escrever… Quantos não conseguem fazer nem isso? Temos que valorizar a vida, sempre! beijos, obrigada pelo comentário 🙂

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  4. Descubro em você uma querida, uma fofa, uma pessoa de bem e do bem.

    Me identifiquei na frase “O gênio da matemática e da física muitas vezes é um deficiente social, incapaz de fazer amigos ou manter um relacionamento”, pois meu filho por enquanto é asperger e luto com ele e por ele para vencermos este “incapaz”.

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  5. Muito bonito, Cris, sua generosidade e solidariedade são virtudes riquíssimas e me fazem orgulhar cada vez mais de você, minha querida nora. Beijos, Ana Rita

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  6. Crisss,

    3h e eu numa insônia lascada e chorando com o seu texto, que lindo!
    E força ai para ajudar quem você ama, se precisar de “força extra”, só chamar, vou correndo.

    Bjs,

    Clara

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    1. Obrigada, Angel! Espero que todas as meninas e meninos com CMT procurem essa acolhida de vocês, para perceberem que são parte de um grupo muito maior e podem contar com a ajuda de várias pessoas quando as dificuldades apertarem 😀 abraços!

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  7. nossa! obrigada pela força pois me sentia um extra terrestre horrivel tinha vergonha de sair de casa e de andar com bengalas me sentia ridicula pensava muitos vao rir de mim valeu mesmo vc me deu forças

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  8. Bom, resumidamente, tinha escrito que adoro seus posts, suas cartas e seu otimismo. Disse que não conhecia essa doença, e que achava que uma reflexão como essa que você fez certamente traria conforto a quem recebesse esse diagnóstico ou conhecesse alguém que o recebesse. Achei importante também contar que “nossa querida” diagnosticada com Guillain Barret se curou rápida e completamente, muito em função do diagnóstico precoce e preciso e também de sua pré condição física e sua dedicação e fé no tratamento. Encerrando, disse que me emocionei, mais uma vez, com a leitura 🙂

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    1. Hehehe, brigada, Vi! 🙂 Eu devia ter colocado esse “fim da história” no post, pelo menos no reproduzido no Brasil Post, né. É importante que os que têm Guillain-barré saibam que a doença pode regredir totalmente! Bjos

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  9. Que lindo. tenho 33 anos sou a sétima filha a única cmt da família. Me casei duas vezes tive três filhos lindos os dois primeiros com cmt a terceira é muito bb não da pra saber ainda. Perdi minha primeira filha de morte súbita aos cinco anos de idade. Não aceitava ter essa condição até me tornar mãe. E ter que mostrar aos meus filhos o quanto somos capazes e especiais. Mês passado tive guillam barret. O que me trouxe mais força e vontade de viver. Hoje não me escondo. Me sinto única
    Venci o guillam barret e estou dando um baile no cmt. Bjs

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  10. Estava pesquisando e achei seu blog,muito bom,me ajudou bastante,tenho uma filha de 3anihos,e pouco mais de 1 ano descobrimos q ela tem CMT.e quanto mais informações melhor,para nos ajudar a lhe dá de forma em geral.parabéns pela iniciativa. 🙂

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  11. Kika, se é que posso me referir a você assim…Minha esposa é portadora de CMT e achei sua carta “texto” excepcional e a achei ao acaso na net…Li para ela que se encheu de novas “vontades” do viver…Parabéns…Vou ler todas as cartas suas, pois admiro seu jeito de escrever…Abraços Silvio Simonetti

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  12. eu sou portador desta sindrome
    charco marie toth
    moro sjcampos ta difivil conviver com isto preciso de ajuda
    12 996 70 45 41 este celular serve como whatsap tbm
    agradeco
    se poderem me ajudar
    meu nome fernando

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  13. Sei que não é fácil descobrir que é portador de CMT,mas,é possível conviver harmonicamente com ela.Construindo laços de amizade com outros portadores,só quem tem essa condição entende as queixas. Eu descobrir a pouco tempo que tenho o tipo 1B,um pouquinho mais rara que a 1A,como no período de investigação sofri muito,chorei muito,tudo foi muito. Através da rede Sarah fiz os testes genético e constatou a doença,sinto muitas dores,choques,contrações e várias outras coisas,capazes de nos jogar pra baixo,mais o trabalho e os amigos têm me ajudado a continuar lutando. Nunca percam a fé é ela que nos move para frente. Sintam-se abraçados por mim,não esqueçam, compartilho da mesma dor!!!!!! Maizi Passos,Camacan-Ba,fone:(73) 988375114 também é whatsap.

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  14. Obrigada Kika Castro pelas sábias e incentivadoras palavras. Essa carta escrita em 2014 continua atual nos dias de hoje.
    Todos nós com CMT devemos divulgar essa doença que é a mais comum entre as neuropatias genéticas.
    Cadastrem-se na ABCMT – Associação Brasileira de Charcot Marie Tooth e vamos juntos tornar a Doença de Charcot-Marie-Tooth conhecida no Brasil.
    http://www.abcmt.org.br/cadastro

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