Carta à BHTrans sobre uma certa trocadora de ônibus

Prezados atendentes da BHTrans,

Como não há um canal para elogios, apenas para reclamações (que imagino serem bem mais frequentes), me utilizo deste mesmo. Mas o que eu gostaria de registrar é um elogio à trocadora do meu ônibus, linha tal, número tal.

Ela estava em sua primeira viagem do dia, iniciada pontualmente às 7h10, das seis viagens que faria até as 19h20 desta sexta-feira quente de dezembro. Retribuiu meu bom-dia, como o motorista já havia feito, e comentava com ele o que deveria ter motivado o atraso do ônibus anterior, que tinha deixado este anormalmente lotado. Apesar de eu pegar o ônibus num dos pontos iniciais, e, por isso, geralmente ir sentada durante a maior parte do percurso (ainda mais agora, com o início das férias escolares), desta vez estavam todos de pé, mais mal-humorados do que nos permite uma boa sexta-feira.

Mas a trocadora seguia bem-humorada, conversando com o motorista nas horas vagas, ajudando a cadeirante a descer pelo elevador, fazendo suas atividades rotineiras de sempre. Na semana passada, ela já havia enfrentado a fúria de uma senhora obesa e esnobe, que passou todo o trajeto dizendo que a trocadora tinha errado nas contas e dado o troco a menos. “Errei não, minha senhora. Pode usar sua calculadora aí, que eu fiz a conta de cabeça e tenho certeza de que está certa.” A senhora tanto gritou e esbravejou, que outros passageiros começaram a gritar e esbravejar também, num surto de mau-humor coletivo contra a trocadora, até que a obesa resolveu verificar na calculadora do celular e percebeu que, de fato, a conta da trocadora estava certa. Quem disse que alguém pediu desculpas? Mas a trocadora não ligou: sorriu, satisfeita com suas habilidades matemáticas, e continuou bem-humorada, sem ligar para essas pequenas adversidades do dia no ônibus.

Diz ela que já chorou de raiva várias vezes, com esses escândalos rotineiros. É como o cliente do banco que grita com o bancário por estar com raiva da fila grande, da agência lotada, do atraso no atendimento, da falta de caixas, dos juros da dívida. O bancário é o elo mais fraco do sistema. Da mesma forma, os passageiros dos ônibus da BHTrans estão cansados com a superlotação, com o atraso, com a falta de higiene, com surtos esporádicos de baratas, com a chuva, que deixa as janelas fechadas e o ar abafado. E descontam naquela trocadora, que engole aquela mágoa coletiva e, ainda assim, continua bem-humorada.

Provavelmente ela pensava nisso tudo quando, num ponto da Savassi, um dos bairros mais nobres de Belo Horizonte, subiu um sujeito jovem, rabo de cavalo na cabeça, roupa de quem ia para a academia de ginástica às 7h30, quando a maioria ia trabalhar. Quis pagar a passagem de R$ 2,65 com uma nota de R$ 50. Na janela ao lado da trocadora, a placa da BHTrans dizia que o troco máximo é para notas de R$ 20. Mas ela ia quebrar o galho dele e já estava juntando o troco. Antes, porém, perguntou simplesmente: “Não teria uma nota mais baixa pra facilitar?”

E o sujeito se descontrolou. “Acha que não tenho dinheiro pra pagar esses R$ 2,65? Vai me ameaçar com aqueles caras lá do Cafezal, onde você mora? Eu moro na Savassi! Vou ligar pra BHTrans pra te denunciar por atender mal aos clientes! Coitado do seu marido! Tá precisando de alguém pra ser cobertor de orelha! Aqui tá todo mundo indo trabalhar! Você tem que atender bem os clientes que pagam os impostos que viram seu salário!” – e por aí foi.

Fazia tempo que eu não cruzava com um legítimo babaca em minha frente e fiquei incomodada por não ter falado umas coisas para ele, mas fiquei mais preocupada em registrar mentalmente a cena, para dividir com o mundo a existência de pessoas mesquinhas e até cruéis como estas. Pouco depois, ele saiu, não sem antes gritar para ela: “Me desculpa! Espero que sua vida melhore!”

A trocadora reagia a todas essas palavras não com o choro apertado da raiva, como o que eu experimentaria, mas com respostas rápidas e bem-humoradas, tentando contornar a situação: “Minha vida está ótima, viu!” Em certa altura, ela comentou: “Você só está me tratando assim porque é uma mulher aqui!”. E é verdade. Queria ver se fosse um homem com o dobro do tamanho dele. Mas era uma trocadora, vaidosa, com lápis no olho, pronta para encarar um dia de 12 horas de trabalho antes do descanso do fim de semana.

Quando ele foi embora, ela estava tremendo de raiva. Em sua primeira viagem desta sexta-feira modorrenta, um desconhecido tinha conseguido estragar seu dia em um trecho de apenas quatro quarteirões. A troco de nada. A troco de R$ 47,35 que ela não precisava ter aceitado trocar. A troco de morar na Savassi e se achar no direito de humilhar o elo mais fraco da cadeia que o deixou meia hora esperando no ponto de ônibus.

Ele ameaçou denunciar a trocadora ao 156, dizendo que foi maltratado por ela. Pois bem. Denuncio também, pelo mesmo canal, o comportamento desse cidadão. Na esperança de que a trocadora receba um prêmio.

Cordialmente,
Cristina

Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

10 comentários

  1. Puxa, é complicado… A cobradora é uma guerreira, pra aguentar esses casos no transporte público de uma metrópole… (note que aqui no RS, se usa mais o termo “cobrador” em vez de “trocador”). Cristina, parabéns pela solidariedade!
    Aqui em Porto Alegre/RS, a lei do troco diz que se o cobrador do ônibus não tiver troco para dar ao passageiro antes de ele desembarcar, este é dispensado do pagamento da passagem, A MENOS QUE o valor dado não seja maior que 20 vezes o preço da passagem. Aqui, atualmente a passagem é R$ 2,85 (uma nota de R$ 50 é menos que 20 passagens; o que poderia, teoricamente, beneficiar o passageiro em caso de ele só contar com essa nota do real ao pagar). Mas o que vale mesmo é o bom senso. Eu, particularmente, não gosto quando quero andar de ônibus ou de lotação, ou comprar o Diário Gaúcho (que custa R$ 0,75 nos dias úteis) ou qualquer coisa de baixo valor, e eu só tiver notas de quantia alta. Se possível, me dou ao trabalho de tentar trocar esse dinheiro, ou senão deixo para comprar mais tarde. Até na hora do saque no caixa eletrônico, eu penso nisso: procuro sacar valores sem serem múltiplos de 100 ou de 50 reais, alguns terminais do meu banco dão até notas de R$ 2.
    Aliás, eu raramente pago passagem de ônibus em dinheiro, uso o cartão de bilhetagem eletrônica que me permite, inclusive, pegar dois coletivos numa baldeação e pagar uma passagem apenas.
    Abraço e boa tarde.
    Guilherme – funcionário público – Porto Alegre.

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  2. Que lindo, Cris. Trabalhei por 4 anos no comércio, sei como são estas coisas também, principalmente no final do ano…
    Eles responderam alguma coisa? Fiquei curiosa!

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      1. Infelismente!!!Pessoas infelizes gostam de maltratar os outros!Estas criaturas se acham melhores porque tem dinheiro,moram em bairros nobres.Coitados!Tenho é pena de pessoas assim,sao pobres de espirito.

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