Os deuses (de quando eu tinha 17 anos)

Acho que já pus essa foto aqui, mas serve também pro post de hoje. Eu, do alto da Serra da Moeda, provavelmente em 2005.

Sentir é pensar com os poros, prazer muito maior que o de meros neurônios

Chuva, sol, vento, a natureza se expande em maneiras diversas. O melhor que há é fechar os olhos e abrir os poros, sentir cada manifestação da natureza como se fosse deus ocupando nossa alma por inteiro.

Deitar na grama fresca só para destacar o calor do Sol. Respirar o ar tangível que impregna as narinas com calor nauseante. Sentir a roupa ir colando aos pouquinhos na pele. Como se fosse um couro protetor, onde se marca a ferro quente. Os cabelos molhados, a testa pingando, derretendo, aquele calor de tostar a ponta das orelhas e arder o sentido dos olhos.

Andar na rua escura sem enxergar nada além do vulto. O quarteirão às lamas, o barulho dos trovões. A chuva forte tilintando seus sinos invisíveis, as árvores farfalhando num carnaval de seiva. Abrir as narinas e respirar a terra, mais gostosa que a fumaça encardida da poluição. Terra e água, compondo perfume primaveril. Abrir os braços, em vez de guarda-chuvas, jogar ambos ao alto e vê-los dançando para a pneumonia. Um tombo feliz, um banho de lama, lavado pelo chuveiro ao alto. Lavagem de alma, de estado de espírito, de poeira, calor, trabalho, dor, mágoas. Lavar aquele semblante seco e enxurrá-lo para bem longe. Acidez natural da chuva acaba de corroer pensamentos maus e deixa só a estátua fina e imutável da criança – esqueleto indirimível -, feliz por se ver livre para sentir a chuva em toda sua plenitude.

O melhor é o vento. Andar pela rua – não de ouro, mas de fotografia – com os braços completamente abertos, cabeça levemente inclinada para o céu, olhos fechados – um quase êxtase religioso para atingir o deus natureza. É impossível não sorrir. A brisa levanta o cabelo, balança o tecido leve, refresca como um cubo de gelo derretendo-se na língua. Levanta o balão de hélio e a pipa que ficava presa no poste da Praça Nova Iorque. Parece que levanta também os pés, levita o menos esbelto, aquele deprimido pelo regime de doces. O vento dissipa o sangue das veias, oxigena o corpo por inteiro, ativa o cérebro enferrujado e entope o coração do gás menos denso da natureza. É entorpecente, alucinante, lisérgico: mas droga não tóxica.

Quem sabe senti-lo, aproveita todo instante de dádiva, na esquina da padaria, na rua dos sonhos ou no alto de uma montanha. Não precisa pensar em nada, nem no que os pesados pensam, ao ver as aves com suas asas abertas prontas para dar seu vôo. Vento na janela do carro veloz não dá espaço, mas a sensação é a mesma. O ideal é alçar vôo no dia mais vulgar dos dias, pegar impulso no alto de um morro, esquecer-se até das trivialidades e afogar em pleno céu, protegido apenas pelo deus Liberdade!

(20.10.2002)

Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

10 comentários

    1. Nossa, que comentário rápido! rs
      Também achei inspirador relembrar esse texto de quase dez anos atrás. É incrível como dez anos fazem diferença na cabeça de uma pessoa, né? Dá pra sentir nas linhas e entrelinhas toda a afobação com que eu encarava o mundo, um jeito emocionante e meio dramático de falar das coisas! Uma excitação, uma tensão, uma eletricidade.
      É bom reler essas coisas antigas e ver essas fotos antigas porque, quem sabe, posso me inspirar a ser assim de novo! (Afinal, como todos sabemos, ser criança ou jovem pra sempre independente de idade…)

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      1. Vem muita água aí por baixo
        muita chuva de baixo para o alto.
        Muitos guarda-chuvas apoiando rios de fora,
        muitos tufões entortando caixas d’agua.
        Muitas gerações líquidas, escorregadias, lama e
        muita marmelada… Mortadelas, berinjelas, abacaxis,trambiques em escalas simples!
        Muita pimenta do reino a ser plantada,
        na porta da casa, rente à escada.
        Lá no quintal, de uma pequena fresta brota água
        límpida; em volta da areia brilhante que será
        retirada…
        Rolo na lama fina e a chuva cai!
        Liberdade total em baixo de um temporal

        Ubirajara: improviso.

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  1. Tem um monte de coisa no meu blog que eu escrevi há mais de vinte anos. Eu me vejo um menino ainda, mas tenho consciência de um outro menino que existiu antes de mim. E como eu não tenho tanta energia mais, fico tentando “invocar” aquele menino pra fazer as coisas pra mim… 😀

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  2. eu não tenho nada para escrever, apesar de ter gostado do texto e ter notado uma coerência com o seu discurso recente em conversas de buteco….

    de qualquer forma o comentário esta contabilizado

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  3. “O ideal é alçar vôo no dia mais vulgar dos dias, pegar impulso no alto de um morro, esquecer-se até das trivialidades e afogar em pleno céu, protegido apenas pelo deus Liberdade!”

    Ah, eu que preciso tanto das bençãos deste deus Liberdade…!

    E quase 10 anos depois, Cris, os anseios continuam os mesmos?

    bj

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