Carta a deus (ou: uma humilde sugestão de morte)

Caro deus (peço licença para me referir ao senhor em letra minúscula, para que sua palavrinha, em quatro letras, possa abarcar todas as crenças em todas as entidades divinas e espirituais, e até mesmo as concessões filosóficas dos ateus e agnósticos que porventura calhem de ler este texto. O senhor não liga pra pormenores gramaticais, né?),

Venho por meio desta, humildemente, contestar seus sábios desígnios e fazer uma sugestãozinha despretensiosa para, quem sabe, ser usada na próxima fornada de seres vivos que o senhor jogar em alguma biboca do universo que estiver em condições de recebê-los.

O senhor fique à vontade para discordar ou mesmo me castigar pela petulância, mas parto do princípio de que me deu cérebro e livre arbítrio e adrenalina e outros estímulos químicos para poder fazer umas ousadias e ter umas atitudes rebeldinhas vez por outra, né? Senão, qualé a graça?

Mas, enfim, continuando. Sabe o que é, eu não concordo com esse seu sistema de morte. Ela é importante? É sim, claro, não duvido. Com ela, valorizamos mais a vida. Um morre, o outro nasce e nós mantemos em algum equilíbrio (embora mais nasçam do que morram e em outubro já estejamos alcançando a marca claustrofóbica dos 7 bilhões na face da Terra). Nem cogito viver infinitamente, acho que seria um porre.

Mas, do jeito que tá, fica uma bagunça. Pessoas da melhor estirpe morrendo, enquanto outras, cruéis até não poder mais, continuam sugando a vida alheia, em troca de dinheiro ou outros benefícios. Não estou nem trabalhando em causa própria, não. Não vou falar, de novo, da Madrinha. Nem vou cogitar a injustiça que seria levar outras jóias como meus pais, irmãos, primos. Pra ficar na injustiça mais genérica possível, daquelas escancaradas, que qualquer desconhecido há de concordar (porque, afinal, quanto mais pessoas concordarem comigo, maior a chance de o senhor ser dobrado pelos meus argumentos infalíveis, né?), veja o caso daquelas crianças desnutridas na Somália.

Elas já espantaram o mundo com suas formas esqueléticas, os lábios secos, os olhos vidrados e o silêncio sem forças de soltar um gemido lá pelos anos 80. Todo mundo viu aquelas fotos. O mundo passou por muitas crises desde então, mas sempre foi possível evitar aquela fome. E nada foi feito pelos ricaços, nada foi providenciado pela ONU, e os corruptos — pergunta se eles morrem? — dominaram aquele país e hoje vêm com a cara mais lavada dizer que não há fome por lá.

(Vou poupar meu blog daquelas imagens desesperadoras, mas basta dar um Google caso o senhor queira revê-las.)

E tem outras questões sobre a morte, sabe? Tem o parente que briga com o outro parente e ele se vai, e fica a culpa. E a briga na maioria das vezes era uma picuinha, sabe? Uma bobagem de humanos. E, no fundo, os dois se amavam, mas, em nome do orgulho dos homens (que o senhor criou, vale lembrar), perderam a chance de dizer.

Mais outra questão. A gente estuda, a gente trabalha, rala, rala, ama alguém, procria e, sem mais nem menos, morremos? What for? O senhor não acha que já está na hora de explicitar um pouco nossas missões, pra dar uma sentido a tudo isso?

E não é que eu ache que não há sentido algum, veja bem. Não quero ser acusada de dar munição às pessoas confusas e tristes que conhecemos e que eu, mais que ninguém, acho que deveriam ver a vida com mais leveza e alegria.

Só acho que é tudo muito difícil pra nós, meros mortais, de entendermos. E que o senhor, com sua sábia sabedoria (desculpe pela redundância) deveria pensar em maneiras para que a gente entenda tudo mais facilmente.

E aí é que entra minha sugestão.

E se o senhor estabelecesse uma idade (digamos, 90 anos? Há idade razoável para isso? O senhor, com sua sabedoria, que defina esses detalhes técnicos) e já deixasse na lei natural das coisas, escritinho: no aniversário da idade X, todos os homens e mulheres desta Terra perecerão. 11º mandamento, por exemplo.

Como todos, sem exceção, ricos e pobres, bons e maus, honestos e corruptos, todos, enfim, sempre morreriam naquela idade, não caberia contestação. Seria justo. Tudo bem, os homens continuariam achando um jeito de bagunçar a coisa toda, vender privilégios, criar templos no mínimo questionáveis, mas, pelo menos, a maior injustiça de todas (aquela da Somália, a dos nossos pais…) já estaria sanada.

E mais: todos saberiam que a morte estaria à espreita em exatos anos ou meses ou dias (de preferência, cá pra nós, não carecia de ter doença dolorosa, né? Todos podiam morrer com a mesma naturalidade dos nascimentos). E, portanto, quem não aproveitasse a vida, azar, foi por pura incompetência, não por acomodação ou despreparo.

Além do mais, haveria tempo de todos consertarem todos os erros e desacordos e se reconciliarem, para morrerem em paz e deixarem os outros também em paz.

Até para os governos seria bom, porque seria possível fazer planejamentos e gerenciar os recursos e estimar as aposentadorias e dar o privilégio aos velhos de desfrutarem de seus últimos anos, sem sobressaltos.

O senhor poderia controlar um pouco mais o ritmo de nascimentos e, quem sabe, oferecer a esse planeta-laboratório mais recursos naturais, para que, estimando direitinho, muitas gerações pudessem viver numa boa.

E o mais importante efeito colateral, a meu ver, seria a mudança cultural. Não mais sofreríamos tanto com o passamento de nossos entes mais queridos, porque a morte seria um ritual solene já previsto desde nosso nascimento e poderíamos lidar com ela de forma muito mais natural.

Tenho certeza, caro deus, que o senhor deve ter mil argumentos para rebater estes meus (do contrário, já teria pensado e implementado essa minha sugestão por aqui, não é mesmo?), mas, enquanto não me ocorrem, deixo esta pequena petulância registrada na internet, para que outros homens e mulheres bem-intencionados possam me contestar livremente.

(Mas, por favor, caso o senhor decida implementar em outro planeta, das futuras fornadas, não deixe de me mandar um scrap avisando, porque eu gostaria de saber que um lugar assim, onde a vida faz sentido e tem lógica, existe por aí, nesse mundão de deus.)

Um abraço caloroso,

Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

14 comentários

  1. Achei mto bom…mto bom mesmo…nada como humor e leveza para sentirmos o q realmente foi dito e a dor e revolta pelo q passou…e pode ter certeza, q mesmo antes de escrever, ele ja havia lido rsrs….bjo

    Curtir

  2. eu acho que as pessoas se enganam a respeito de quem está lá em cima no comando. 😦

    o seu post inteiro parte do pressuposto de que deus é bom…

    Curtir

  3. Já que vc deu passe livre pra contestar…. rs. Cris, acho que este texto poderia fazer sentido se houvesse a superioridade da vida terrena ou até mesmo se somente ela existisse. Tudo o que vc diz toma como base que o que somos, produzimos, batalhamos etc se solidifica aqui e que a nossa vida se destina a esta estada neste planeta em um número maior ou menor de anos. Tendo como ponto de partida o Deus bíblico (e sem entrar nos méritos de Sua existência ou não) o que faz sentido é a eternidade ao lado dEle e o foco deve estar nela. Obviamente, isto não limita nossas atividades aqui, apenas não as define como alvo principal ou como indícios de felicidade verdadeira. Leia novamente o que vc escreveu pensando sob este ângulo. As coisas mudam e mesmo não sendo Deus, acho que já dá para encontrar argumentos que vão contra os seus. Deus fornece muitas maneiras para entendermos Seus desígnios, mas não será pelo pensamento racional que conseguiremos chegar até as respostas.O sentido da vida está em ser essencialmente feliz hoje e para sempre. Ficou meio “crente chata” esse comentário, mas eu tinha que falar =) rs

    Curtir

    1. Ei, Ju! Respeito sua visão de que esta vida é só uma passagem antes da vida eterna etc. Assim como respeito a dos espíritas, que dizem que esta é só uma escola para uma fase de aprendizagem da nossa alma, que ainda vai seguir muitas outras vidas, com os carmas e tudo o mais. E respeito o Nirvana dos budistas e todas as outras visões do divinos que todas as culturas têm e as quais, geralmente, ignoro (no sentido da palavra parente da ignorância mesmo). E espero que respeite minha visão de que esta vida é a única que temos, pra viver como pudermos, tenha ela sido criada por um deus ou por uma conjunção de fatores químicos e biológicos resultados de fatos ocorridos há trilhões de anos e sempre em processo.
      bjos

      Curtir

  4. Ei, Cris. Claro =). Na verdade, eu nunca tinha visto alguém que pensasse como vc! Imaginava que esta visão de apenas uma vida e na Terra seria própria do ateísmo. Mas, sim, se formos analisar que mesmo crendo que pode existir um Deus (não bíblico) e só a vida por aqui, nada faria sentido nenhum e o seu texto sim. Viajei pensando nessa teoria e nas crianças…

    Curtir

  5. Eu só imagino um telemarketing à la Tekpixs: “Ei, você aí, que está beirando os 90. Tá chegando a hora, né? E você, que é jovem, mas não quer deixar as coisas para a última hora, é bom se preparar! A funerária BOA VIAGEM tem um pacote de serviços para que você e sua família não se preocupem com mais nada na hora do adeus! Confira os nossos planos especiais e lembre-se: com menos de um real por dia você garante toda a tranquilidade no pós-vida! Aproveite! Os 10 primeiros que ligarem para o número que está na tela bla bla bla…”

    Eu acho que Deus – ou deus – já anda experimentando por aí nos confins do Universo. E parece que este universo não tem espaço suficiente para essas experiências, pois continua em expansão ( é o que dizem). Ele – ou ele – mesmo já andou fazendo umas experiências muito doidas aqui na Terra, como o Éden, dilúvio, Sodoma e Gomorra, pragas no Egito e conduzindo uma galera por 40 anos no deserto. Acho que ele largou a Terra pra lá… ou, vai ver, essa é outra experiência…

    Curtir

  6. Acho que acaba sendo tudo dor, lembrando a música do Renato Russo. Quando nascemos, sentimos dor, pois dói ao expandirmos os pulmões pela primeira vez. Então não tem como a morte ser tranquila como o nascimento, que deve ser bastante estressante para o bebê (lógico, em comparação com certas mortes esta dor deve ser ínfima, mas ainda assim nada tranquila). Eu encontrei uma forma de pensar, que vai mais de acordo com a do espiritismo, mas respeito demais o modo que você pensa. Além do mais, é muito difícil, pelo menos na minha visão, não passar por ele vez por outra rsrs. Sempre fico muito triste com mortes de crianças. Quando minha priminha de 4 anos morreu de câncer me questionei da mesma forma que você se questionou. Acabei por focar nos benefícios que ela nos trouxe enquanto esteve entre nós. É, a morte é complicada de se entender e cada um acaba por encontrar sua explicação e se confortar (ou não) com ela. Gostei do texto e gostei demais! É intrigante o tanto que gosto de visões agnósticas e ateias sobre a realidade kkkkk.

    Obrigado pelo texto!

    Curtir

    1. Obrigada a você, pela leitura e pelo belo comentário. Realmente, a forma mais sábia de lidar com isso é focando em tudo o que pudemos viver de bom ao lado daquela pessoa, né. O que torna a morte de crianças ainda mais triste é pensar que foi tão curtinho esse prazo de felicidade compartilhada. Mas, ainda assim, criança traz alegria demais da conta! Aos poucos, a dor vai virando memória e a saudade fica mais serena, né? Abraços e comente mais! 😀

      Curtir

Deixar um comentário