Carta a um vizinho mal-humorado

Caríssimo morador do andar de baixo,

Sei como é desagradável quando um barulho nos acorda à 0h30 e faz nosso coração “subir à boca”. Isso me acontece toda vez que uma obra de reforma de prédio começa às 7h, quando ainda estou no meu sono mais profundo, ou quando um alarme de carro dispara na rua ou, ainda, quando o vizinho de cima, ao abrir o sofá-cama para o visitante se acomodar, deixa ele escapar de suas mãos, caindo no chão com algum estrondo.

Foi o que ocorreu ontem e imagino que o senhor tenha se assustado com o barulho. Mas o barulho durou um segundo, depois passou. Então imagine minha confusão mental quando o interfone tocou, dez minutos depois do incidente, e o porteiro disse que o senhor queria que eu “maneirasse com o barulho”!

Pensei: deve se tratar de outro vizinho, em outro canto do prédio, que está dando uma festa, com direitos a saltos-altos batendo no chão de taco de madeira, música alta, gritaria contínua. Aqui não, senhor porteiro. Estou escovando os dentes, de chinelos e pijama, e minha visita está estendendo a roupa de cama. No mais absoluto silêncio.

O porteiro desliga mas, surpresa!, o insistente vizinho — o senhor — toca o interfone de novo, um minuto depois. Ora essa, quem está insistindo no barulho agora?

E pede, de novo, para que eu “maneire no barulho”. Eu digo: deve ter sido o sofá que abrimos há dez minutos, mas já passou o barulho, não? E o sr. insiste: acordei com um susto, meu coração veio à boca etc.

Penso, penalizada: deve ser um senhor carente, no sentido sentimental da palavra, para se dispor a sair dez minutos depois de um barulho que o acordou, calçar os chinelos, descer seis lances de apartamentos, incomodar o sossego do porteiro e vir agora insistir, em dois interfones seguidos, que o barulho o incomoda.

Penso ainda: quanto incômodo ele criou para si para fazer essa cruzada de dez minutos, quando o barulho, que durou um segundo, já havia terminado há tempos! Não seria muito melhor tomar um copo d’água, esperar o coração se acalmar do susto, e voltar a pegar no sono?

Mas falo: desculpe por aquele barulho, mas foi há dez minutos… Não há mais barulho.

O sr. continua se lamentando e, por fim, desliga.

Fico imaginando se, ao pegar um copo d’água na cozinha e deixar cair o copo no chão, o sr. irá se dar a todo esse trabalho para reclamar e pedir que eu “maneire no barulho”, como se eu estivesse dando uma festa grega, lançando pratos contra a parede por prazer.

Permita-me dizer que todo esse episódio me proporcionou várias reflexões antes de dormir, atrasando minha insônia, que agora faço questão de dividir com o senhor:

As pessoas não sabem mais viver em vizinhança. Os intolerantes e estressados estão vencendo a guerra. E só me resta torcer para que eles realizem o desejo de viver num mundo sem vizinhos chatos e vão se mudar para uma chácara no meio do mato, bem longe da cidade e de seus concidadãos.

Cordialmente,

Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

8 comentários

  1. A tolerância é a arte da convivência. Tanto mais necessária quanto maior for a proximidade do vizinho, e nada mais perto do que os apartamentos edificados em prédios verticais; há paredes-meia em todo os limites, tal como uma ilha, acrescida de água por baixo e por cima. Nestas circunstâncias, a conviência demanda mais que tolerância, reclama uma certa cumplicidade.
    Mas quá! Já nos idos dos longinquos anos de 1970, penava eu com a intolerância da vizinha do andar de baixo. Não é que a velhinha reclamou na polícia que eu entrava em meu apartamento às 24 horas, sem tirar os sapatos, despertando-as com os insuportáveis toc toc toc? Muito bem, na audiência, na DP de Campos Elísios (ah sim!, o ap, ficava na Barão de Limeira, vizinho da nossa Folha, rsrsr ) após relatar sua versão e ser dispensada, recomendou ao Delegado que não judicasse muito de mim, esse pobre trabalhador e estudante.
    É isso, minha cara amiga Cristina, os séculos passam a mesquinharia do “serumano” só faz aumentar.
    Abraços de solidariedade.

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    1. Que horror! Só me faltaria essa: ele reclamar de eu entrando em minha própria casa depois de um desses dias de 15 horas de trabalho que de vez em quando aparecem. E olha que nem uso salto alto!
      No apartamento anterior o problema era parecido. Eu tinha feito a mudança toda ao longo da semana, mas deixei os quadros para pregar apenas no sábado, quando meus pais estariam em visita e poderiam me ajudar a deixá-los alinhadinhos (porque sou meio estabanada). Eram TRÊS quadros apenas e escolhemos a melhor hora pra pregar, ao meio-dia, quando ninguém estaria nem dormindo nem fazendo a sesta ainda. A operação duraria, ao todo, coisa de cinco minutos de barulhos, no máximo. E não é que, na segunda martelada, um vizinho veio interfonar?!
      As pessoas estão loucas, é o que eu falo.
      bjos

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  2. E eu que estava sossegado no apê. O barulho vinha de algum outro aparamento. A vizinha interfona reclamando do barulho. Adiantava eu falar que não era eu a origem? Quase celebrei a falta de assunto e completei o refrão.

    []s,

    Roberto Takata

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  3. Tive um problema parecido com a minha vizinha do lado. Toda semana ela ligava para o porteiro e pedia para ele – na maior sem-graceza do mundo, coitado – reclamar comigo do barulho. E eu tentando adivinhar o que era, se a tv estava alta, se o papo com a visita tinha passado do volume.

    Até que um dia, estava sozinha em casa, passando roupa, no mais absoluto silêncio, quando ela mandou seu “comissário” reclamar do barulho (?) mais uma vez. Aí decidi resolver a situação como gente: conversando. Bati na porta da moça, expliquei que não era eu a fonte dos barulhos e pronto.

    Nunca mais ela reclamou. Inclusive, perguntei outro dia se a incomodava o fato de eu ligar o aspirador de pó à noite, e ela disse que nunca ouviu um pio do meu apê. Vai entender.

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  4. Ei moça…

    segue abaixo minhas respostas padronizadas para vizinhos:
    “ligue para defesa civil”
    “Chame a polícia”
    “Entre na justiça”
    “Comunique a imobiliária”
    “Denuncie na vigilancia sanitária”
    “Converse com a prefeitura”

    Ou seja, nada que um bom diálogo não resolva.

    beijão

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