Fanatismo é burro, mas perigoso

Já escrevi outras vezes, desde que tinha meu blog anterior, que todo fanatismo é burro, mas não existe fanatismo inocente: fanáticos são pessoas potencialmente perigosas, justamente por se acharem melhores que as outras, superiores, se acharem capazes de dar lição nos outros, que ainda não sucumbiram àquela fé.

Isso serve para fanáticos de partidos políticos, que tanto vimos na campanha nojenta do ano passado, para os fanáticos de times de futebol, e, claro, para os religiosos. Serve para todos.

De toda a profusão de análises que foram feitas sobre o massacre do Realengo — e não gostei de praticamente nenhuma, pela facilidade com que os analistas têm de dar receitas fáceis para coisas complexas — a que mais me chamou a atenção saiu publicada na Folha de hoje. É do Contardo Calligaris, geralmente ótimo.

Toda ela merece ser lida, mas o trecho de que mais gostei, sobre o fanatismo, eu destaco aqui:

Para transformar os fracassos amorosos em glória, o fanatismo religioso é o cúmplice perfeito. Funciona assim: você é isolado? Sente-se excluído da festa mundana? Pois bem, conosco você terá uma igreja (real ou espiritual, tanto faz) que lhe dará abrigo; ajudaremos você a esquecer o desejo de participar de festas das quais você foi e seria excluído, pois lhe mostraremos que esse não é seu desejo, mas apenas a pérfida tentação do mundo. Você acha que foi rechaçado? Nada disso; ao contrário, você resistiu à sedução diabólica. Você acha que seu desejo volta e insiste? Nada disso, é o demônio que continua trabalhando para sujar sua pureza.
Graças ao fanatismo, em vez de sofrer com a frustração de meus desejos, oponho-me a eles como se fossem tentações externas. As meninas me dão um certo frio na barriga? Nenhum problema, preciso apenas evitar sua sedução -quem sabe, silenciá-las.
Fanático (e sempre perigoso) é aquele que, para reprimir suas dúvidas e seus próprios desejos impuros, sai caçando os impuros e os infiéis mundo afora.
Há uma lição na história de Realengo -e não é sobre prevenção psiquiátrica nem sobre segurança nas escolas. É uma lição sobre os riscos do aparente consolo que é oferecido pelo fanatismo moral ou religioso. Dito brutalmente, na carta sinistra de Wellington, eu leio isto: minha fé me autorizou a matar meninas (e a me matar) para evitar a frustrante infâmia de pensamentos e atos impuros.

Wellington era fanático e tinha sofrido bullying e nunca ficou com nenhuma mulher e, quem sabe, tinha ainda um distúrbio mental para potencializar tudo isso. Mas nem precisa. O caldeirão já estava fervendo, mesmo sem o distúrbio. Ao ver aqueles dois vídeos que ele fez, não fico com a impressão de estar de frente para um doente mental não tratado. A mim parece ver ali um ator, falando palavras bem pensadas, no tom certo de voz, com tudo friamente calculado para que aquela imagem fosse preservada depois da “resposta radical”. Ele estava, afinal, respaldado pela autoconfiança que o fanatismo lhe proporcionou.

Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

11 comentários

  1. Eu acho que um sujeito relativamente articulado que acredita que há justificativa lógica pra matar gente tem problemas mentais, sim. E do pior tipo: do tipo que muita gente mais simples, como a que o cercava, demora pra notar que precisa de ajuda médica.

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    1. Pode ser. Mas acho arriscado diagnosticar o cara, como muita gente está fazendo. Sobre o fanatismo, pelo menos, não há dúvida, por tudo que ele escreveu.

      Aliás, vale dizer que o presidente da associação brasileira de psiquiatria disse que esse tipo de diagnóstico precoce é problemático para os milhares e milhões de doentes mentais, que já sofrem com trocentos preconceitos e jamais fariam aquilo. Segundo esse e alguns outros psiquiatras, não há nenhum indício concreto de que o cara sofria de qualquer tipo de transtorno mental: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0804201113.htm

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  2. Pois é, Cris. E o fanatismo anda de mãos dadas com o estereótipo. Como diz Carl Sagan em “O mundo assombrado pelos demônios” (p. 367), os estereótipos são numerosos. “Os grupos étcnicos são estereotipados, os cidadãos de outras nações e religiões são estereotipados, os gêneros e as preferências sexuais são estereotipados, as pessoas nascidas em várias épocas do ano são estereotipadas (astrologia solar) e as ocupações são estereotipadas. A interpretação mais generosa atribui esse modo de pensar a uma espécie de preguiça intelectual: em vez de julgar as pessoas pelos seus méritos e deficiências individuais, nós nos concentramos em uma ou duas informações a seu respeito, que depois inserimos num pequeno número de escaninhos previamente construídos. Isso poupa o trabalho de pensar, embora em muitos casos custe o preço de cometer uma profunda injustiça. Com isso, aquele que pensa por estereótipos também fica protegido do contato com a enorme variedade de pessoas, a multiplicidade de maneiras de ser humano.”

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  3. É verdade, as pessoas são engolidas por essas coisas e de repente param de pensar!
    Se você escolhe seguir um caminho, pense, estude para que não seja engolido pelo fanatismo…
    Eu lembrei de ti esses dias, daquele post onde você se pergunta onde estão as pessoas que votam em caras com o Bolsonaro! Achei um dentro da sala de aula, um colega estudante de jornalismo é totalmente nessa linha… Tenso.

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      1. Ontem, ele estava xingando no FB uma amiga minha que é do PSTU falando que o movimento da Assembleia Nacional dos Estudantes é coisa para “vagabundos” e um colega revidou o comentário, daí o argumento dele foi algo do tipo: “Eu aposto que o que eu ganho é mais do que sua família inteira junta”
        Oi??
        Como pode né?!

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  4. Pode-se represar um rio, por algum tempo e até uma certa altura, assim também, pode-se reprimir os instintos que nos informam. todavia, uma vez rompida a barreira, manifesta-se a violência acumulada.
    O fanatismo é o arrimo que sustenta a frustração.
    Abraços, Cristina.

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