As mulheres e a Idade Média do século 21

Coloque de cabeça pra baixo, agarre o buquê e tenha filhos!

Hoje leio a manchete da Folha sobre declaração da futura ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres: “Nova ministra diz que mulher não é obrigada a ter filhos”.

À primeira vista, me parece uma manchete muito fraca, por óbvia. Mas aos poucos cai minha ficha que ainda vivemos num mundo excepcionalmente machista e conservador.

Acabo de receber a prova definitiva.

Agora há pouco chegou minha mãe (que vai ler este post, “de coração aberto”) e disse que, apesar de eu não acreditar, eu deveria receber a conversa dela com o “coração aberto”.

Após essa introdução, prosseguiu: “Dizem que Santo Antônio é o padroeiro das moças. Dei este para sua irmã e, logo que ela se casou, peguei de volta. Dei para sua outra irmã e, agora que ela se casou, quero dá-lo a você.” E me estendeu o santinho.

Na mesma hora, enquanto eu recusava o pedacinho de cera pintada, lembrei que no casamento da minha irmã, em novembro, ela não fez como as outras noivas, que se viram de costas para um monte de mulheres desesperadas e lança um buquê. Antes de se virar, minha irmã pegou o microfone e me chamou pelo nome completo. Eu estava do outro lado do salão, conversando com primos sumidos, e nem ouvi. Não adiantou: ela foi até mim, de buquê na mão, e me entregou o arranjo.

Deve ter alguma placa na minha cabeça dizendo: “Quero casar e ter cinco filhos e, do alto de meus 25 anos, preciso fazer isso já.”

“Este é o sonho de toda mulher”, argumentou agora a minha mãe.

Não, o meu não é. Até quero ter filhos, em algum momento distante da vida, mas os exemplos de casamento que vejo por aí não são o que se chama de estimulantes.

O problema é que vivemos num país em que a ministra dizer que nenhuma mulher é obrigada a ter filhos vira manchete de jornal. (Ok, ela se referia ao aborto, mas não vou entrar nesse mérito da questão, porque post bom é post rápido). É um ambiente em que não basta tomarmos decisões, temos que passar a vida inteira explicando e justificando para os outros, e ainda assim seremos olhadas como E.T.s.

Independente disso, também tenho a crença pessoal de que, se um dia eu me casar, será porque encontrei um homem muito encantador, e não porque coloquei um santinho de cabeça pra baixo… Será que é muito, em pleno século 21?

Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

28 comentários

    1. Também acho. Mas será que já somos um mundo civilizado? E pergunto em nome do mundo mesmo, porque acho que o Brasil não está sozinho num planeta em que o papa vai à África, com seus trocentos portadores de HIV, discursar que camisinha é pecado.

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  1. Verdade. Até homens sentem essa pressão pro casamento – mas lá com 30 a 40 anos. No entanto, para as mulheres isso é muito pior. Aliás, quase tudo ainda é muito pior para as mulheres.

    É uma sociedade engraçada a nossa. Olham torto para as mulheres que não querem se casar, mas tolera homicidas em potencial que bebem e saem dirigindo.

    []s,

    Roberto Takata

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    1. É uma sociedade engraçada por várias razões. A maior graça é, ao meu ver, suportar um casamento de 50 anos com alguém de quem não se gosta apenas porque é “feio” divorciar (ou por sei lá qual outra razão esdrúxula).
      Quantos casais, mesmo de namorados, que estão juntos apenas por conveniência, você conhece? Eu conheço incontáveis. E nunca fiz nem pretendo fazer isso – só me junto a alguém de quem realmente gosto.

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  2. Enquanto boa parte das mulheres aceitarem essa pressão/pecha, a situação não vai mudar. Isto vem de alguém que já foi em uma balada voltada para solteirões (de ambos os sexos) de mais de 40 anos. É sério: nunca me senti tão mal. E não é porque eu era mais de vinte anos mais novo que a maioria das pessoas ali. Era porque eu me via, literalmente, como “a caça”.

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  3. É exatamente do jeito que você disse. Tenho 20 anos e já sinto isso, essa pressão da família pra que eu arrume um namorado e case logo.

    O Brasil ainda é um país muito conservador nesse quesito. Associa-se a felicidade da mulher ao comprometimento com alguém, e quem vive à margem, indo contra isso tudo, se sente, de uma forma ou de outra, pressionado ou angustiado por não corresponder às expectativas dos parentes…

    Eu no seu lugar faria a mesma coisa, não aceitaria o santinho 🙂

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  4. Olá,

    Mensagem muito sincera a sua. Já passou da época dessa civilização planetária continuar amarrada nas religiões. Espiritualidade é cada um viver na Luz, no Amor, na Paz, e não apenas abaixar a cabeça para um monte de regras inventadas para aprisionar o povo e manter o o poder sobre eles. Essa foi a colonização deste planeta, mas vamos mudar essa história.

    Paz em todos os Quadrantes da Galáxia!

    http://www.luznocaminho.net

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  5. Ola,

    O conceito de mulher tem que casar e ter filhos é o que culmina na superpopulação da classe pobre que tem de 5 a 6 filhos só para ter o salário-família. Ouvi em um certo lugar que ter filhos é um ritual de passagem de garota para mulher. Ou seja, se não tiver filho, ela nunca deixará de ser criança?

    Sempre ouvi da boca das mulheres, próprias por isso acho que não é tão machismo assim como seu artigo diz, existe uma parcela – 50% é a mulher querendo. Tal como existem mulheres discretas e outras que esbanjam o respeito conquistado sem dar qualquer crédito ao sacrificio de algumas personalidades nos anos 50-60 (Vide – Revolta do Sutiã).

    E os outros 50% é a idéia de que a mulher deve seguir a etiqueta mais dura: Ser discreta, ser promíscua (ao mesmo tempo), ter filhos, constituir família, ficar em casa, ser dona de casa e etc. Mas existe o ‘suborno’ emocional. A mulher em parte ficando excluída da sociedade por ter que seguir tantas etapas, passa a desenvolver a necessidade de “ser aceita” (algumas). Então todos criam a idéia de mulher ideal (Bonita, escultural, tem bom papo e tem dotes culinários) na educação feminina é dito que a mulher tem que saber cozinhas, agradar, ser paciente e estar sempre em forma.

    Logo casar + make-up é a rotina de toda mulher, infelizmente a cultura incumbe na cabeça de cada um que é assim. Não vou ser falso, gosto de mulher maquiada e em boa forma, mas digo de forma vaidosa. Não acho que forçar uma pessoa a mudar seu estilo, antes dela reconhecer se isso é essencial.

    Att,
    Rafael Junqueira.

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      1. Mas mesmo que a mulher “queira” não quer dizer que não há opressão. Elas “querem” porque é assim a criação da sociedade. Não se trata de uma livre escolha à qual elas foram convencidas com argumentação; mas sim por educação impositiva de que as coisas são e devem ser assim.

        []s,

        Roberto Takata

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      2. De acordo com a teoria feminista, não. As mulheres podem ter ações machistas, tanto quanto pessoas negras podem ter ações racistas por exemplo. O machismo na verdade se fortalece nas ações coletivas, educação formal e não formal do que nas ações das mulheres que reproduzem o machismo. Acho importante colocar desse forma, pois é bem fácil dizer “as mulheres também são machistas” sem refletir sobre essas ações.

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  6. Minha experiência é o “passo seguinte” da tua. Estou casado há cinco anos. Casei porque estava namorando há um ano e meio quando vim pra São Paulo, namorei à distância mais um ano e meio e chegou um ponto em que ou juntava ou acabava. Resolvemos juntar, e até hoje não vi motivo pra lamentar a decisão.

    O primeiro choque pra família dela foi a nossa decisão de não fazer cerimônia nenhuma. Usar fantasia de noiva nunca fez a cabeça da minha mulher. Papel passado? Não vemos motivo algum pra prestar contas a qualquer homem de saia, seja padre, juiz ou escocês (da minha parte, se o escocês vier numa garrafa eu até penso no assunto). “Tu não fez festa de 15 anos, não fez cerimônia de formatura e agora não vai fazer casamento também?”, foi o grande desapontamento da família dela. O povo ainda pensa muito em termos de rituais e instituições e andar fantasiado e tirar foto/fazer vídeo/imprimir convite. País cartorial, enfim. Ouvindo, parece que isso importa mais que o companheirismo, a cumplicidade, o rir junto, o pensar junto.

    Cinco anos depois continuamos juntos e bem. As famílias já entendem a situação. Mas aí vem a pressão seguinte: “e os filhos, quando vêm?” A pressão vem de pais, avós, amigos e mestres. Ela não quer, eu não tenho a mínima pressa. Se um dia ela mudar de ideia, beleza. Se não, tem muito gato largado pelo mundo e precisando de casa. Mas tem tanta coisa que a gente ainda quer fazer que não poderia fazer tendo filho que simplesmente não está na lista de prioridades.

    Nos últimos dias, visitando a família, me caíram algumas fichas sobre um mundo que mudou muito debaixo do nariz das gerações pouco anteriores à nossa. Elas se adaptaram junto, mas não no mesmo ritmo. Porque o silício desenvolve mais rápido que as relações humanas, simples assim. Mas elas também se desenvolvem.

    Por isso é que eu acho chata a pressão, que eu sofri e sofro, mas também não culpo quem pressiona. O século passado voou mais rápido do que qualquer outro. Isso gerou as placas tectônicas de continentes humanos perfeitamente legítimos, mas que têm uma separação e causam tremores quando se chocam.

    Minha avó é do tempo em que mulher “não precisava” estudar além do suficiente pra saber anotar recados e não ser enrolada nas contas. Mais tarde, viúva do primeiro marido, diz que até pensava em estudar, mas trabalhava até tarde e conta que sempre que perdia o bonde e precisava ir a pé para casa sabia que haveria uma vizinha fofoqueira espiando na janela e especulando sobre o que ela estaria fazendo.

    Minha mãe é relativamente jovem, mas casou com 17 anos (e separou com 22) porque era o único jeito de namorar com mais liberdade. Chegou a estudar até metade do segundo grau e não foi mais longe porque não quis. Minha avó até hoje lamenta não ter “tido cabeça” pra estimular a continuar. Minha mãe só pensou em voltar a estudar mais tarde, mas precisava que minha avó estivesse lá em casa pra cuidar dos três filhos à noite, pra evitar que pusessem fogo na casa. Não dava, então o curso da mãe foi interrompido na metade.

    Se for olhar, passaram 40 anos entre a hora em que minha avó largou a escola por já saber ler e escrever e a hora em que minha mãe largou o segundo grau por ter que casar. Passou quase isso de lá até hoje. É mais tempo do que eu tenho de vida mas é relativamente pouco tempo na história do mundo. (Minha mãe casou no mesmo dia em que David Coverdale estreou no Deep Purple. Pra mim os discos daquela fase continuam atuais, então…)

    Mais ainda: há um quarto de século, quando eu estava na segunda série, eu era a única criança da turma que tinha os pais separados. Isso me fez sentir vergonha quando chegou a hora de fazer trabalhinho para o dia dos pais. Todos os outros tinham os pais juntos, mas pelo menos no caso de alguns colegas de então eu vi depois, com os lares vindo abaixo, que tinha muita coisa “por obrigação”. Hoje em dia, acho que quem julga pagar mico é o guri que tem os pais juntos, pra citar uma crônica do Verissimo.

    Sei lá quantas mães dos meus colegas casaram pelo mesmo motivo da minha. Mas a minha foi a única que teve coragem de saltar fora da formalidade. Pagou um preço alto por isso – era jovem, sem estudo e teve que sustentar três filhos sozinha. Mas ela não se arrepende da decisão. Só lamenta ter tido pouco apoio da família, o que a impediu de estudar, por exemplo. Quando ela queria retomar os estudos, já não precisava se preocupar com as vizinhas espiando pela janela.

    O maior sinal do avanço, ainda que extremamente modesto, é o fato de tu poderes recusar o santinho e tua mãe no máximo ficar chateada, mas nunca preocupada com a possibilidade de a filha “ficar falada” por ter outras prioridades.

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    1. Belas reflexões, professor Marcelo!

      Pois é, minha mãe ficou chateada, como eu já previa, ao escrever o post.

      Mas esta não é a primeira nem será a última vez que divergimos e que acabei transformando a divergência em texto, na maioria das vezes um texto privado (um poema ou uma carta, por exemplo), mas às vezes um texto público (como o post no blog Tamos com Raiva sobre a imbecilidade de não podermos comer carne em algumas datas religiosas, em tempos em que bacalhau é caríssimo e não simboliza mais nenhum sacrifício para seus comedores).

      E isso só acontece porque, felizmente, minha mãe me criou desta forma, alguém pronta para falar alto diante das incoerências do mundo.

      Aqui cabe uma explicação mais detalhada:

      Apesar de acreditar no santinho de cera e na instituição do casamento, minha mãe é uma mulher moderna e inteligente, tanto para seu tempo como para além dele.

      Cursou psicologia na Fafich da UFMG, em tempos em que “faficheiros” eram considerados comunistas ou maconheiros, certamente subversivos, no começo dos anos 70.

      Ela própria não era nem uma coisa nem outra, porque vinha do interior e tinha que pagar as contas e ajudar a mãe, trabalhando como professora (ela trabalha desde os 16 anos, como gosta de enfatizar).

      Nunca deixou de trabalhar como psicóloga, mesmo tendo que criar os quatro filhos e tendo um marido jornalista (e, consequentemente, dono de horários de jornalista, que às vezes voltam pra casa da Redação só de madrugada). E trabalhou, a maior parte da vida, em dois expedientes. Ah, e, mesmo trabalhando nos dois turnos e com quatro filhos, fez uma pós-graduação à noite.

      Quando instalamos a internet, em 1999, foi a primeira a se encantar com esse novo mundo dos chats, redes sociais, MSNs da vida. Talvez tenha sido a primeira a criar amigos virtuais aqui em casa.

      Depois que se aposentou, foi estudar inglês e fez uma pós em tradução.

      Além disso, é uma devoradora de livros, de todos os tipos, gêneros, tamanhos e graus de dificuldade: históricos, literatura russa, Saramagos, Gabos, best-sellers atuais, espíritas etc.

      Quer dizer, minha mãe não para, ela gira com o mundo.

      Nossas divergências são grandes em vários aspectos, muitos dos quais relacionados à criação que ela teve, bem precária, no norte de Minas, o que a tornou meio “amarrada”. Mas acho que, apesar de não gostar da forma como coloco as coisas nos textos, minha mãe ficaria desapontada se soubesse que sua filha é uma menina acabrunhada, incapaz de pensar com a própria cabeça, como ela sempre fez. Então, acho que, no fundo, desagrado agradando um pouco.

      Vou continuar achando essas superstições e simpatias uma grande bobagem e bem desconfiada da instituição do casamento. Apesar disso, paradoxalmente, sou romantiquíssima (meio poeta) e prezo por pequenos rituais inventados por mim mesma, como contei no post sobre o Natal, mais abaixo. O que nos permite concluir que temos que ter a humildade de contestar, mas sabendo que também não somos perfeitos e que temos muito o que aprender. Até para sermos orgulhosamente contestados por nossos filhos e netos, no futuro.

      ————————
      P.S. Que felicidade é receber comentários inteligentes assim, no meu novo blog-bebê! Volte sempre, Marcelo! =)

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      1. Adorei essa conversa… tão sincera e bonita o comentário (quase post) do Marcelo… me identifiquei tanto com a companheira dele, heheh

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  7. Em muitas coisas, Kika, o Brasil ainda é muito atrasado, como no tratamento dado às mulheres, o racismo (como o sistema de cotas, que pra mim nada mais é do que racismo institucionalizado) e a união entre pessoas de mesmo sexo.
    Se as coisa virão a mudar, não sei dizer, acho que cabe a cada um fazer sua parte e deixar de lados as convenções sociais inúteis e descabidas.
    Valeu.

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