Chuva e cachoeira, nem na Serra do Cipó

Beagá dando uma de Terra Cinza (Foto: CMC)

Hoje estava tudo certo para eu ir a um dos meus lugares favoritos no planeta – a Serra do Cipó – mas fui surpreendida por esse céu maravilhoso, que teria me feito achar que estava em São Paulo, se meu pai não tivesse me acordado.

A Serra do Cipó é um lugar paradisíaco a pouco mais de uma hora de Beagá, com trocentas cachoeiras, trilhas, matas e esconderijos da civilização. Toda vez que vou lá o roteiro é: pão com mortadela na Padaria do Cipó, alguma cachoeira escolhida aleatoriamente, dependendo da disposição para caminhar vários quilômetros ou dirigir na estrada de terra (da Capivara, que está interditada há algum tempo, da Serra Morena, da Caverna, da Farofa, do Gavião, da Lapinha etc, e, em momentos muito raros de preguiça, a Cachoeira Grande), espiada no mirante, almoço no Matuto e, à noite, pizza na Santa Pizza, seguida de conversa olhando para o céu mais estrelado do universo, não raro pincelado por estrelas cadentes.

Pois bem. Mas cachoeira e estrada de terra são duas das poucas coisas que não combinam com chuva. Já aconteceu de eu sair de Beagá no céu mais ranzinza do mundo e passar quatro dias de feriadão no céu mais azul da Serra do Cipó. Mas hoje telefonei ao Matuto e me disseram que Juquinha não está para sol. Então abortamos a ideia.

Afinal, na única vez que enfrentei chuva constante na Serra a experiência não foi das melhores. Estava com três amigos, passando Carnaval longe das muvucas, e decidimos conhecer apenas as cachoeiras mais distantes.

Pela primeira vez, depois de muitos anos, fui informada que a Gavião não estava interditada. Decidimos ir para lá.

Essa cachoeira fica dentro do Parque Nacional da Serra do Cipó, mas seu acesso mais rápido, através de 7 km de trilha fácil e sombreada, se dá por uma cerquinha sem portaria e sem qualquer controle de entrada.

Parei meu carro na beira dessa cerca e lá fomos nós, tão ingênuos que não tínhamos nem uma garrafinha de água ou um Fandangos de presunto pra tapear inconveniências.

Quando chegamos lá, depois de cruzar com dois cursos d’água que mal alcançavam a altura do tornozelo, demos a sorte de encontrar um guia local. Ele nos advertiu:

– Não está chovendo agora, mas choveu na cabeceira e haverá tromba d’água. Não entrem no poço, nem cruzem para o lado de lá, ou ficarão presos aqui!

As velhinhas que ele guiava de volta para o vilarejo, a cavalo, ainda nos deixaram um pacote de biscoitos.

Decidimos seguir o conselho do guia, mas ficar ali – afinal, tínhamos andado por mais de um hora e aquela era a cachoeira mais bonita da Serra, até então.

Logo começou a chover e decidimos nos esconder debaixo de uma pedra, onde ficamos por uns dez minutos. Foi aí que algum ser inspirado resolveu colocar a cabeça pra fora e percebeu que aquela cachoeira tinha se tornado uma catarata do Iguaçu e estava prestes a nos engolir.

Em questão de minutos, a Gavião encheu como doida. (Fotos: CMC)

Saímos correndo de sob a pedra e alcançamos a margem esquerda, que estava a uns poucos passos dali. Quando nos viramos para olhar o lugar onde estávamos alguns segundos antes, percebemos que já estava cheio de água. Minutos depois, nem a pedra seria mais vista.

Segundos depois, a pedra onde estávamos foi inundada por água. Mais alguns minutos, nem a pedra seria vista, debaixo do aguaceiro. (Fotos: CMC)

Decidimos voltar. Depois que andamos uns 3 km, nos deparamos com um rio Amazonas com correnteza fortíssima. De onde havia surgido? Perplexos, percebemos que era aquele curso d’água da vinda, que antes batia na altura do tornozelo.

Quais eram nossas possibilidades? Passar a noite no mato, até que a água baixasse, acompanhados de três biscoitos e uma fartura de pernilongos, ou tentar atravessar aquela correnteza perigosa. Cientes de que nenhuma alma sabia que estávamos naquela cachoeira, nem mesmo a organização precária do Parque Nacional, optamos pela segunda possibilidade, mas de forma cautelosa: um dos quatro seguiu pela margem do “rio” até encontrar um lugar onde a correnteza não estava tão forte, porque formava uma espécie de represa. Segurando nos galhos das árvores e nos cipós, atravessamos até a outra margem, meio nadando, porque a água era tão funda que não nos dava pé.

Andamos por mais um ou dois quilômetros até ver um segundo “rio”, idêntico. Mas já estávamos mais seguros e atravessamos com menos dificuldade.

Pouco depois, chegamos ao meu carro e, exaustos, com a adrenalina a um milhão, demos gargalhadas por vários minutos, puro nervoso.

Apesar de imundos e enlameados, a fome era tanta que decidimos parar no Matuto pra almoçar. O garçom nos olhava curioso, até que não aguentou e perguntou por que estávamos naquela aparência deplorável. Quando dissemos que a culpa era do Gavião, ele arregalou os olhos:

– No Réveillon um grupo morreu levado por uma tromba d’água lá.

Ah, sim, e quem foi o imbecil que desinterditou essa cachoeira mesmo?, pensamos.

Bem, mas o final dessa aventura foi feliz. Colocamos dinheiro (pra que levar dinheiro pra cachoeira, não me pergunte), documentos e outros pertences pra secar no sofá da pousada (meu amigo perdeu sua câmera de R$ 1.000), dormimos um sono pesadíssimo e, às 22h, acordamos para brindar à sobrevivência ao som de Lô Borges (sim, o próprio) e de seu mineiríssimo Clube da Esquina.

Nada muda o fato de que a Serra do Cipó ainda é um dos lugares mais perfeitos do planeta:

Por Cristina Moreno de Castro (kikacastro)

Mineira de Beagá, jornalista (passagem por Folha de S.Paulo, g1 e TV Globo, UOL, O Tempo etc), blogueira há 20 anos, amante dos livros, poeta, cinéfila, blueseira, atleticana, politizada, otimista, aprendendo desde 2015 a ser a melhor mãe do mundo para o Luiz. Antirracista e antifascista.

13 comentários

  1. “Maravilha de História!!!
    Que pessoas de sorte!!!
    Que bom que tudo terminou bem!!!”
    Fico eu aqui pensando enquanto tendo digerir o ” imbecil” que me foi atribuído no texto como analista do Parque Nacional da Serra do Cipó.
    Geralmente temos atendimento na Portaria do Retiro (aquele precário Trailler sim!) e esperava que vocês tivessem passado por ele. Se isto tivesse acontecido talvez não teriam passado tamanho sufoco. Certamente teriam lido no Termo de Responsabilidade sobre os riscos das Trombas D’água comuns neste período de chuvas. Como não encontraram atendimento, talvez também não observaram a placa de “Não entre se Não estiver autorizado!” Seria talvez a segunda chance de evitar o sufoco. A mais eficiente informação recebida foi a do guia (que convenhamos, por pouco não teve valia).
    Infelizmente as informações e avisos do Parque falharam!!!
    A cachoeira não está interditada porque as tais duas mortes não ocorrem ali. No córrego que vocês atravessaram na ida ( o Rio Amazonas da volta) morreu infelizmente uma visitante em 2003. Na ocasião esta entrada estava fechada, mas infelizmente o casal que ali chegou não queria perder a viagem e entrou irregularmente. A situação ocorrida com vocês ocorreu com eles. Na travessia do Córrego cheio o rapaz conseguiu passar, mas a garota foi arrastada e o peso da mochila contribuiu para o afogamento.
    Em 18 de Janeiro agora 2 turistas morreram pelo mesmo motivo na Cachoeira do Bené, local conhecido pelo curioso nome de “Rala Bunda”, fora do Parque.
    Gostaria muito de ter mais contato com vocês para trocarmos idéias e sugestões para que nenhuma pessoa mais passe pelo que vocês passaram.
    Lamentamos a falta de estrutura e gostaríamos de convidá-los à participar. Assim poderão ver de perto que não é por falta de empenho, trabalho e muitas vezes sacrifícios pessoais que a situação continua precária. É falta de apoio mesmo, dos mais diversos setores públicos e privados a um dos lugares “mais bonitos do Planeta”.
    Convidamos à participação e seria muito bom escutá-los. Temos diversos canais de colaboração para com o Parque, inclusive programas voluntários voltados ao Uso Público.
    Agradeço o espaço…
    Agora deixe-me acabar de digerir o “Imbecil”.

    Edward Elias Júnior

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    1. Oi, Edward. Fica fácil digerir o “imbecil” se você pensar que ele não foi dirigido especialmente a ninguém, só à nossa fúria do momento. Nós nem sequer sabíamos seu nome 😉

      Olha, todas as vezes que vou para o Parque passo pela portaria principal, que tem controle de entrada, aluguel de bike e cavalo etc. Mas, naquele dia, fomos informados por funcionários da própria portaria que havia uma entrada mais próxima da Cachoeira Gavião, e foi ela que usamos, obviamente (e mesmo assim era distante uns 6 ou 7 km de caminhada). E naquela portaria, me desculpe, mas não havia qualquer sinal de vida da administração, placa, trailer, NADA. Pelo menos não quando fomos para lá, pode ser que tenha melhorado desde então.

      Minha única sugestão é que seja criada uma pequena portaria ali também, com informações para os turistas e alertas sobre os sufocos que podem enfrentar ali. Como vc diz que isso já existe, não tenho mais o que sugerir. A Gavião continua a mais linda cachoeirra do Cipó na minha memória 😀
      Escreva sempre, o espaço é dos leitores!
      abraços.

      P.S. Você é “analista” do Parque Nacional da Serra do Cipó? Isso significa que é da administração? Posso ficar com algum telefone de contato seu, para o caso de eu precisar entrar em contato no futuro? E uma curiosidade: este texto chegou a você porque ocorreu algum outro problema recente lá na Gavião?

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  2. Nossa Kika, como sua receptividade me deixou feliz!!!
    Sim, sou analista do Parque, do quadro do ICMBio e nossos contatos são 3718-7151 e 3718-7228.
    Também pode entrar em contato comigo via email, o veículo que mais utilizo atualmente.
    Curiosamente recebi o link para o seu texto de um colaborador voluntário do Parque, igualmente apaixonado pelo Gavião como você. Estamos precisando de gente apaixonada por este lugar ao nosso lado, primeiro porque somos deficiente e precisamos dos mais diversos tipos de colaboradores, depois porque paixão nós motiva! Sou um dos que largou o terno, a gravata e o bom salário de burocrata do Meio Ambiente para se tornar analista de um lugar que também me apaixona.
    Nos procure na próxima visita à Serra do Cipó, terei prazer de lhe apresentar novos locais, nosso trabalho e nossos planos.
    Tenho certeza, você vai se apaixonar ainda mais pelo Parque!!!
    Muito obrigado, mais uma vez, pelo espaço e atenção.

    Inté,

    Edward

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    1. Sou super apaixonada pela Serra do Cipó!! Pena que faz tempo que não consigo um feriado ou folga maior para poder matar minhas saudades… Minha última chance foi nessa folga de natal, mas amanheceu daquele jeito cinza e ameaçador, e acabei desistindo!
      Quando eu voltar para lá, te procuro.
      abraços,

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  3. Cristina sou de Brasília e estou com viagem marcada para conhecer a Serra do Cipó agora dia 2 de janeiro, queria saber á ta chovendo muito seria possível me passar o e-mail do analista do parque o Edward Elias?

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  4. Amo a serra quero me mudar pra lá , mas morro de me medo tenho dois filhos pequenos,( de 4 e 7) anos…queria conhecer melhor!!!!

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    1. Também amo a Serra! Essas trombas d’água são um perigo em qualquer lugar com cachoeira, né? Mas quando são tomadas as precauções, acho que as crianças são as primeiras a aproveitar muito. Deve ser maravilhoso morar lá!

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  5. Adorei o seu relato. Ri e fiquei tenso como se tivesse participado junto dessa odisséia!!!
    Ótimo para alertar pessoas que não tem tanto contato com a natureza e por isso não conhece seus perigos..

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